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CRÍTICA
O paredão do moralismo
BIA ABRAMO
DIZ a Rede Globo que a versão quatro do "Big Brother" é só para o ano, enquanto o SBT anuncia um
pacote de "reality shows", do tipo mais esportivo,
ainda em 2003. Qualquer que seja o formato de "reality show" que venha a prevalecer na televisão brasileira, é fato
que eles pegaram e, para o bem e para o mal, colocam em
questão alguns procedimentos da TV.
No momento em que a coluna é escrita, o resultado do último "Big Brother" ainda não está decidido, mas, seja ele qual
for, tanto a vitória quanto a derrota serão justificadas e entendidas de forma moral. Quem
quer que ganhe, é porque fez
por merecer. Ao abocanhar os
R$ 500 mil do prêmio, o ganhador terá as virtudes premiadas e
os pecados relevados.
Submetidos a escrutínio
constante durante dias e dias,
os participantes exibem tudo o
que podem e que imaginam ser
o apropriado em termos de
comportamento para fazê-los
"merecedores" do prêmio. O
julgamento, na verdade, é duplo: junto com o público, os outros participantes também avaliam, rotulam e constroem suas alianças e estratégias baseados em aferições sobre valores tais como honestidade, lealdade, legitimidade.
Some-se a isso o imperativo de estabelecer uma tipologia
-cada um, querendo ou não, acaba por representar uma espécie de papel, assumir uma persona e, novamente, a adequação ou não ao papel, a distância maior ou menor entre a personalidade assumida e a "real" também se tornam motivo para o exame moral, do tipo "verdadeiro" ou "falso", aqui como
sinônimo de mentiroso. Aqui, o moralismo do telespectador,
que julga tanto o caráter do "personagem" quanto a performance do "ator", tangencia a moral de quem elabora as regras
que cercam a realização do programa.
É exatamente nesse terreno que as mãos da direção, edição e
roteirização do programa mais pesam. Ao contrário do que
diz ao vivo o apresentador, ao público não é oferecida uma visão furtada, uma "espiada", mas sim um olhar que obedece a
algum tipo de plano narrativo. Imaginem: trata-se de sustentar a atenção do público em um bando de zés-ninguém, absolutamente desinteressantes, em um cotidiano tornado ainda
mais tedioso por conta do confinamento.
A única maneira, parece ser a resposta das experiências já
acumuladas até agora, é construir o programa de forma a simular alguma espécie de narrativa, que, paradoxalmente, se
aproxime o máximo possível de
uma narrativa ficcional. O "reality show" só "acontece" na medida em que se afasta da realidade, em que a substitui pela ficção
(torta, barata e simplória, mas,
ainda assim, ficção).
Neste último "Big Brother", a
discussão transcendeu o plano
dos procedimentos técnicos e
estendeu-se para os resultados
de votação do público, o que deu
munição para alegações indignadas sobre a idoneidade do
programa -e obscureceu o que
talvez fosse mais importante,
que era desvendar em que medida a manipulação que ficcionaliza o "reality show" dirige os julgamentos do público.
Menos moralista e mais realista, Silvio Santos, em sua admirável mistura de truculência e experiência televisiva, desfaçatez e carisma, tanto sabia disso que manipulou as regras à
(sua) vontade e ao gosto do público em "Casa dos Artistas 1",
para melhor formatar uma narrativa -e foi tão diabolicamente bem-sucedido que chegou até a criar o que já se pode
chamar de convenções do "gênero", como a redenção da pobreza ("Boa Noite, Cinderela"?), o casal contra tudo e todos, a
ingênua perigosa, o brucutu simpático etc.
E-mail:
biabramo.tv@uol.com.br
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