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CRÍTICA
Hic!
EUGÊNIO BUCCI
DIZEM do Campari que "só ele é assim". Da cerveja
Brahma, que ela "refresca até pensamento". Nada
disso quer dizer coisa alguma, mas mesmo assim é o
que se diz. E tome doses e mais doses de comerciais
de bebidas alcoólicas. A gente até fica de porre.
A Kaiser assume a forma de moças estupidamente quentes,
tanto que os garotos-propaganda, estupidamente embevecidos, acariciam os vasilhames como se eles fossem bochechas
femininas. O Martini é vendido por um personagem que confessa ter abandonado a batina em
prol do casamento. Hic! E por um
outro que chutou uma rentável
carreira de executivo para dedicar-se à poesia e, claro, aos contos
eróticos pois, segundo ele, a poesia não dá dinheiro nenhum. O
eletricista que conserta os fios
bem no alto das torres de alta-tensão, às quais consegue chegar
graças a uma corda que o pendura no helicóptero, gosta mesmo é
de uísque nacional. O que uma
coisa tem a ver com a outra? Difícil saber. O pensamento, como a
voz dos ébrios, costuma ser pastoso nos comerciais alcoólicos.
Há no ar um novo filme, este
promovendo uma certa marca de caipirinha enlatada. De
pinga. Pelo que se consegue entender, o comercial faz ali um
trocadilho visual entre a caipirinha, bebida, e uma atriz caracterizada como alguém que está de saída para dançar quadrilha. A caipirinha enlatada é maliciosamente comparada à
atriz fantasiada de caipirinha, entendeu? Percebeu o truque?
Hic! Enquanto o protagonista do comercial faz insinuações
hipersexuais brincando com as duas caipirinhas nesse diálogo, hic!, inteligentíssimo, a paciência do telespectador se deixa
embriagar. Só mesmo sob intensa embriaguez para suportar
o insuportável. A televisão é um botequim continental. Ou
melhor, a televisão é uma UTI onde passam mal milhões de
pares de olhos alcoolizados, vitimados pela overdose de propaganda de beberagens as mais variadas.
Volto ao Campari, ainda uma vez, porque "só ele é assim".
"Assim como?", alguém há de perguntar. "Assim, uai", responderá a caipirinha-moça do anúncio de pinga. Campari é
assim: a garrafa é uma espécie de lente da verdade, que deixa
ver a natureza oculta daqueles que se postam atrás dela. Um
raio X da alma. Um bobo alegre vira um tigre, uma boba triste
vira uma serpente, coisas desse tipo. "In Campari, veritas",
entendeu? Inteligentíssimo, não? Campari, sendo ele assim
como ele é, revela o que cada um é por dentro: o que você tem
por dentro. Hic! Mil vezes: Hic!
A função de mostrar ao telespectador o que ele mesmo é por
dentro é uma das atribuições mágicas da imagem da mercadoria,
de qualquer mercadoria. Os pobres consumidores dizem quem
são pelas grifes e pelas marcas que
colam sobre o próprio corpo.
Uma etiqueta na camisa define o
espírito de quem se deixa vestir
por ela. "Aquele colar tem a cara
da titia", excita-se a adolescente
com o nariz colado numa vitrine
do shopping center, às vésperas
do Natal. No caso das mercadorias alcoólicas, esse efeito penetra
cada célula do indivíduo, posto
que o conteúdo material da mercadoria, o líquido em questão, pode ser engolido por qualquer pagante e surtirá sobre
ele um efeito físico, narcotizante, alucinógeno, excitante,
anestesiante ou embriagante.
Sob a tirania dessas campanhas, beber é imperativo. Beber,
beber, beber. Não pelo sabor ou pelas propriedades físicas da
bebida, mas beber para entregar-se de alma e, principalmente, de corpo ao jugo da imagem da mercadoria. Beber para
atribuir-se um significado. Para dotar-se de sentido. Até a
perda dos sentidos. "Eu sou aquilo que eu bebo", comemora
o infeliz. E não estará de todo errado. A publicidade ordena:
ou você bebe esse rótulo ou você não é ninguém.
Eu, hein? Hic! Será que estou ficando sóbrio? Melhor ficar
bêbado de novo.
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