São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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CRÍTICA

Hic!

EUGÊNIO BUCCI

DIZEM do Campari que "só ele é assim". Da cerveja Brahma, que ela "refresca até pensamento". Nada disso quer dizer coisa alguma, mas mesmo assim é o que se diz. E tome doses e mais doses de comerciais de bebidas alcoólicas. A gente até fica de porre.
A Kaiser assume a forma de moças estupidamente quentes, tanto que os garotos-propaganda, estupidamente embevecidos, acariciam os vasilhames como se eles fossem bochechas femininas. O Martini é vendido por um personagem que confessa ter abandonado a batina em prol do casamento. Hic! E por um outro que chutou uma rentável carreira de executivo para dedicar-se à poesia e, claro, aos contos eróticos pois, segundo ele, a poesia não dá dinheiro nenhum. O eletricista que conserta os fios bem no alto das torres de alta-tensão, às quais consegue chegar graças a uma corda que o pendura no helicóptero, gosta mesmo é de uísque nacional. O que uma coisa tem a ver com a outra? Difícil saber. O pensamento, como a voz dos ébrios, costuma ser pastoso nos comerciais alcoólicos.
Há no ar um novo filme, este promovendo uma certa marca de caipirinha enlatada. De pinga. Pelo que se consegue entender, o comercial faz ali um trocadilho visual entre a caipirinha, bebida, e uma atriz caracterizada como alguém que está de saída para dançar quadrilha. A caipirinha enlatada é maliciosamente comparada à atriz fantasiada de caipirinha, entendeu? Percebeu o truque? Hic! Enquanto o protagonista do comercial faz insinuações hipersexuais brincando com as duas caipirinhas nesse diálogo, hic!, inteligentíssimo, a paciência do telespectador se deixa embriagar. Só mesmo sob intensa embriaguez para suportar o insuportável. A televisão é um botequim continental. Ou melhor, a televisão é uma UTI onde passam mal milhões de pares de olhos alcoolizados, vitimados pela overdose de propaganda de beberagens as mais variadas.
Volto ao Campari, ainda uma vez, porque "só ele é assim". "Assim como?", alguém há de perguntar. "Assim, uai", responderá a caipirinha-moça do anúncio de pinga. Campari é assim: a garrafa é uma espécie de lente da verdade, que deixa ver a natureza oculta daqueles que se postam atrás dela. Um raio X da alma. Um bobo alegre vira um tigre, uma boba triste vira uma serpente, coisas desse tipo. "In Campari, veritas", entendeu? Inteligentíssimo, não? Campari, sendo ele assim como ele é, revela o que cada um é por dentro: o que você tem por dentro. Hic! Mil vezes: Hic!
A função de mostrar ao telespectador o que ele mesmo é por dentro é uma das atribuições mágicas da imagem da mercadoria, de qualquer mercadoria. Os pobres consumidores dizem quem são pelas grifes e pelas marcas que colam sobre o próprio corpo. Uma etiqueta na camisa define o espírito de quem se deixa vestir por ela. "Aquele colar tem a cara da titia", excita-se a adolescente com o nariz colado numa vitrine do shopping center, às vésperas do Natal. No caso das mercadorias alcoólicas, esse efeito penetra cada célula do indivíduo, posto que o conteúdo material da mercadoria, o líquido em questão, pode ser engolido por qualquer pagante e surtirá sobre ele um efeito físico, narcotizante, alucinógeno, excitante, anestesiante ou embriagante.
Sob a tirania dessas campanhas, beber é imperativo. Beber, beber, beber. Não pelo sabor ou pelas propriedades físicas da bebida, mas beber para entregar-se de alma e, principalmente, de corpo ao jugo da imagem da mercadoria. Beber para atribuir-se um significado. Para dotar-se de sentido. Até a perda dos sentidos. "Eu sou aquilo que eu bebo", comemora o infeliz. E não estará de todo errado. A publicidade ordena: ou você bebe esse rótulo ou você não é ninguém.
Eu, hein? Hic! Será que estou ficando sóbrio? Melhor ficar bêbado de novo.


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