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CRÍTICA
Cloaca do penta
EUGÊNIO BUCCI
CONFESSO que bebo Coca-Cola. Ao longo da minha existência, devo ter tido as entranhas lavadas por
uma Baía da Guanabara de Coca-Cola. Um oceano de
Coca-Cola. Um século de imperialismo de Coca-Cola. Eu obedeço as placas que ordenam "Beba Coca-Cola". Eu
bebo Coca-Cola. E é assim, dessa condição de um animal que
bebe Coca-Cola e que pela Coca-Cola é bebido que eu posso
afirmar: eu tenho nojo dessa campanha da Coca-Cola em prol
do Brasil na Copa do Mundo. Tenho nojo sobretudo desse comercial em que Pelé aparece
suado, pingando, com o uniforme do Santos e, claro, bebendo Coca-Cola. O Pelé bebe Coca-Cola.
O leitor, telespectador que
é, há de ter visto a peça em
questão. A câmera, no começo, mostra dois pés calçados
em chuteiras. O esquerdo pisa o chão. O direito descansa
sobre uma bola de capotão. A
câmera vai subindo vagarosa,
num movimento de ascensão. Entra uma voz declamando uma paráfrase pagã
do "Pai Nosso". O texto da
publicidade, cujo autor eu desconheço, faz um trocadilho de
pai com pés, algo como "pés nossos que estais no chão", sei lá,
e assim segue a propaganda que, mesmo não sendo samba,
evolui em feitio de oração. Surge o rosto do rei, suor no rosto,
Coca nos lábios. Perfeição. A tampinha de Coca-Cola entra
em cena, então, e, apenas para não deixar a rima em "ão", tem
o formato de um coração. E lá vem o slogan, que tem algo a
ver com paixão. É isso aí: a publicidade se apropria das cores
da bandeira nacional, do Rei do futebol e do "Pai Nosso" para
construir o valor da marca que, não por acaso, nada tem de
nacional, nem de esportiva e muito menos de católica. É isso
aí: eu sinto nojo.
A publicidade é uma superindústria sem cerimônia que fabrica sentidos e significações para a vida vazia dos sujeitos do
público. Para nós. Cada um de nós se completa nos signos que
a superindústria da publicidade nos oferece. Antes, essas significações eram proporcionadas pela cultura; hoje, são confeccionadas na superindústria. Quem sou eu? Antes, eu seria
um brasileiro, um fã do Pelé, um cristão que gostava de rezar
o "Pai Nosso". Hoje, eu sou um bebedor de Coca-Cola, como
um ralo, como um bueiro, como o Pelé. Por isso a marca da
Coca-Cola tem tanto valor, porque ela se infiltra nos nossos
mecanismos identitários, com o perdão da expressão, e com o
perdão da rima em "ão", e aí, infiltrada, ela nos diz quem somos. Assim como a Nike, essa aí
que fabrica marca, e não tênis,
que é uma superindústria do
imaginário, e não uma empresa
do ramo de calçados. É essa lógica do imaginário superindustrial
que explica parte do gozo experimentado pelo sujeito diante da
TV: ele vê ali o sentido (fabricado) do que não tem sentido, o
sentido de si mesmo. Ele se pacifica. O consumo das mercadorias começa, portanto, pelo consumo das imagens (das quais o
sujeito precisa para se explicar a
si mesmo). E o consumo das
imagens, como se fosse trabalho,
como se ver televisão fosse uma forma de trabalho, ainda que
não remunerado, é o que completa a fabricação do valor das
marcas.
Voltemos à Coca-Cola, coisa gasosa que eu juro que bebo.
Voltemos no tempo, também. Voltemos a 1957, ano em que
Décio Pignatari, um pioneiro da crítica de TV no Brasil, fez o
seu poema "Cloaca", superconcretamente subversivo: "beba
coca cola/ babe cola/ beba coca/ babe cola caco/ caco/ cola/
cloaca". Se adjetivos aí fossem admitidos, poderíamos dizer:
supercloaca superindustrial. Voltemos, enfim, ao juízo que
nunca tivemos. O imperativo "Beba Coca-Cola" entra assim
nos desvãos da fé religiosa, do patriotismo, da devoção a um
rei, nem que seja um rei do futebol. E cria seu valor. Como se
fôssemos todos idiotas, todos inimputáveis, todos obedientes
bebedores de Coca-Cola. É assim e, no entanto, funciona.
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