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CRÍTICA
Dívida pública
EUGÊNIO BUCCI
A REDE Record promete, para domingo que vem, a
estréia de mais um "game show". O nome da telebrincadeira será "No Vermelho", uma alusão mais que
explícita às contas daqueles que se acham endividados. Com efeito, os candidatos serão sempre endividados crônicos. Como prêmio, terão suas dívidas quitadas. Sim, é desalentador. O simples anúncio de que um programa desse tipo
estreará no Brasil já é ofensivo.
É incrível como a televisão pode ultrapassar barreiras na arte de ofender sua audiência. Ela
esculhamba tudo. Agora, zomba
da instituição nacional da dívida.
Todo mundo deve dinheiro neste
país.
A começar do próprio. Os bancos, é claro, devem menos. Bancos têm por hábito ser credores.
Quem não é banco deve. O povo
deve. Os patrões devem. As empresas devem. As empresas de
mídia, estas devem desesperadamente. Há aquelas que devem
montanhas de reais. A Record,
vai ver, não deve tanto, talvez
porque tenha descoberto para
bem de sua prosperidade que a fé
move montanhas. De dólares.
Talvez por isso, se permita fazer chacota, espezinhando da
tragédia das concorrentes. As Organizações Globo somam dívidas de US$ 2,6 bilhões, conforme vem sendo noticiado. (A
propósito, ainda não se sabe se algum acionista da Globopar
se inscreverá como voluntário em "No Vermelho". Seria uma
alternativa. Seria um modo de virar o feitiço contra o feiticeiro, de virar a piada contra o piadista, de fazer com que a Record pagasse a dívida da Globo. Enquanto isso, prevalece o
achincalhe total.)
A televisão escarnece de todos a um tal ponto que passa a escarnecer de si mesma, de sua própria miséria. Escarnece de
sua penúria financeira e de seu déficit de imaginação.
A umas emissoras, como a Globo, faltam aportes em dólar;
a outras, como a Record, falta sensibilidade. Não para que ela
demonstre piedade da Globo, o que seria mais escárnio ainda,
mas para que ela respeite a dor econômica dos brasileiros. Ao
ameaçar lançar esse "No Vermelho", a Record humilha as vítimas anônimas do desemprego. Fora isso, expõe, sem saber,
sua própria desumanidade, a desumanidade de quem ridiculariza em público a inadimplência dos pequenos.
Se vingar o novo cirquinho da Record, os endividados entrarão em cena como atração bizarra. Suas histórias tristes serão narradas em clipes comoventes, tão lacrimosos quanto
lucrativos. É constrangedor. É deprimente perceber que, saldando
dívidas mínimas, o entretenimento produz lucros vultosos.
Servindo como personagens grotescos, como deformidades financeiras, os voluntários ajudarão a emissora a extrair mais e
mais verbas de caridosos anunciantes.
O pior é que há uma justificativa aparentemente racional para
esse tipo de espetáculo. A justificativa de sempre: não importa
que os candidatos sejam humilhados pois, no final, podem ser
socorridos. É curiosa essa alegação, que protege tanto os diretores quanto os telespectadores do programa. Os primeiros se
escondem sob a máscara de quem leva ajuda aos necessitados, nem que seja uma ajuda que nada mais é que um subproduto do circo. E tome circo. Os segundos alegam a mesma
ajuda para se desculpar do prazer que sentem ao ver a ruína
dos outros: "Nós rimos, mas aquele de quem rimos pode ser
compensado pela quitação de suas dívidas". Seria uma troca
justa, portanto.
Não se trata exatamente de cinismo de quem faz TV, nem
de hipocrisia de quem vê. Trata-se apenas de uma falsificação
de racionalidade que termina por enganar a todos. Aquele
que se expõe ao ridículo acredita-se consciente de sua humilhação. Aquele que assiste ao show não se vê como voyeur sádico. E, finalmente, os responsáveis por mais esse tipo de
aberração televisiva apresentam-se como benfeitores. E chamam, sorridentes, o intervalo comercial.
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