São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2003

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CRÍTICA

Nota de despedida

EUGÊNIO BUCCI

NO DIA 2 de janeiro, tomei posse da presidência da Radiobrás, a Empresa Brasileira de Comunicações S. A. Trata-se de uma empresa pública, vinculada ao Ministério da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica. O cargo que passei a ocupar é ligado ao Poder Executivo Federal. Aceitei-o com muita honra e também com a minha melhor motivação, com esperanças de contribuir para a qualidade do jornalismo público. Ao mesmo tempo, aceitei-o com alguma tristeza: terei de suspender a minha carreira de crítico. Há entre as duas atividades -a de crítico de televisão e a de executivo da Radiobrás- um conflito de interesses que só se resolve pela eliminação de uma das duas.
Não é difícil entender por quê. No comando da Radiobrás, sou responsável por cinco emissoras de rádio e duas emissoras de televisão, além de um grande serviço de veiculação de notícias pela internet. Essa condição, é evidente, retira de mim a independência necessária para o exercício da crítica. Há, aqui, um impedimento formal, objetivo, impessoal. Por mais honesto que eu seja, por mais que eu procure evitar que aspectos de uma atividade interfiram na outra, a minha crítica seria, sempre, uma crítica de má qualidade, pois seria suspeita, sem a necessária credibilidade. Não há como prosseguir com a coluna.
A necessidade de independência objetiva não se resume à função de crítico. É uma exigência do bom jornalismo em geral. Não por acaso, uma norma interna da Folha impede que ocupantes de cargos do Poder Executivo sejam colunistas do jornal. É justa. Ela ajuda a demarcar as fronteiras entre os interesses do leitor, que uma boa redação deve buscar entender e atender, e interesses que naturalmente se desenvolvem no interior da máquina do Estado, sobretudo no Executivo. Por melhores que sejam os integrantes do Executivo, por mais éticos e mais idealistas que eles sejam, todos fazem parte de uma lógica de Estado (isso na melhor das hipóteses), que não é a lógica da sociedade. Para o bem da democracia, essa lógica deve sofrer a fiscalização ininterrupta da sociedade e, de modo especial, da imprensa.
De minha parte, concordo, sempre concordei, com a separação explícita entre os interesses do Estado e a imprensa. Não que eu suponha que o Estado seja corrupto por definição. De modo algum. Acredito que o Estado pode, sim, expressar e viabilizar anseios legítimos da sociedade. Acredito que o Estado pode ser um fator de progresso econômico e de justiça social. Acredito também que o Estado pode até mesmo patrocinar um jornalismo público de qualidade superior, um jornalismo que, por certo, não tem o objetivo de competir com a imprensa de mercado, mas que pode, sim, levar informações relevantes e de alta credibilidade a setores amplos de brasileiros que ainda se acham carentes de cidadania. Se eu não acreditasse nisso a minha ida para a Radiobrás não teria sentido. Acredito em tudo isso, repito, mas sei que, para que isso ocorra, é indispensável a vigilância constante.
A partir de hoje, passo a me relacionar com a Folha apenas como leitor. Nas páginas do jornal, passarei a contribuir apenas com a minha ausência saudável. Agora, no campo do jornalismo público, terei muito a fazer. Estou convencido de que existe um grande horizonte para o jornalismo público, um serviço que privilegie o direito à informação do cidadão e que esteja minimamente a salvo da asfixia que as tais "leis de mercado" têm imposto às empresas jornalísticas. Informação de qualidade é um direito. É nessa linha que trabalharei. Sei que é fundamental que uma democracia conte com jornais que sejam independentes do Estado. Mas também sei que é igualmente importante que saibamos construir um jornalismo público democrático que seja independente do capital.


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