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CRÍTICA
O tempo congelado (e quente)
EUGÊNIO BUCCI
LOGO na véspera de 11 de setembro, as imagens começaram a desabar em avalanche. Outra vez, como há um ano, as torres do World Trade Center ruíram
sob o cerrado bombardeio dos aviões de carreira. Em
videoteipe, o passado foi (e é) presentificado. As torres foram
imortalizadas assim, em movimento, num desmoronamento
sem fim. Os bombeiros de Nova York entraram outra vez em
gozo de heroísmo. Um deles apareceu no "Jornal da Globo"
para dizer que odeia os inimigos. Um outro se locomoveu até
o Brasil para dar uma entrevista a
Jô Soares, que até ganhou um boné com a inscrição "11 de setembro, nunca esqueceremos". E, a
toda hora, em todos os canais, as
torres, sempre. A nuvem densa,
escura e monstruosa que engoliu
o sul de Manhattan naquela manhã de sol nunca mais se desfez.
Aliás, o sol daquela manhã nunca
mais se pôs. O estrondo persiste,
os gritos dos transeuntes não se
calam, a poeira sobre os rostos
em pânico, as lágrimas, tudo permanece: desde 11 de setembro de
2001, o tempo histórico está interrompido. Mas não está silencioso: ele ruge. O tempo está congelado. Mas não está enregelado: ele arde a uma temperatura escaldante.
É o que a TV nos traz. Um quadro estranho, ilógico. O movimento é intenso. E, no entanto, não se vai a lugar algum. As
coisas não avançam e nem recuam. E, no entanto, não param.
Difícil explicar exatamente. Talvez o tempo histórico esteja
assumindo em todos os sentidos o aspecto de um televisor no
meio da sala de estar: dentro dele, as imagens velozes vão e
vêm, incessantes, mas ele mesmo, televisor, está ali, parado,
feito um rádio de válvulas, que não sai do lugar.
Bin Laden, o próprio, é um que vai e vem, feito um fantasma
na tela da TV. Está morto e está vivo. Está sumido e está presente. Seu turbante e sua barba entram e saem de foco, como
um prenúncio ou um resíduo, um dom Sebastião às avessas,
que a qualquer momento voltará de uma guerra santa como
num truque de efeito especial. Bin Laden tem um quê de místico, do outro mundo, do além.
Quanto a George Walker Bush, este é um ser do aquém. Estava aquém do momento e, mesmo assim, usurpou a cena.
Seus cabelos branquearam, é verdade, como que a sinalizar
que os anos teriam passado e que a maturidade lhe teria vindo
em socorro. Mas até aí Bush surge como simulacro, um personagem de novela, um Moisés de Charlton Heston que acaba
de descer do Monte Sinai com aquela peruca alva esculpida
em laquê. A despeito da cabeleira
que ele usa como quem carrega
uma coroa, tudo está como antes:
o império busca vingança, como
buscava há um ano, e não consegue consumá-la. Bush é um personagem que erra o endereço do
alvo em busca de um alvo que
não mude de endereço. Na falta
de um Bin Laden, que se desmaterializou, quer alvejar Saddam
Hussein.
Enquanto isso, as torres gêmeas
caem e caem e caem, em rede
mundial de TV. O tempo parou
ali, no 11 de setembro de 2001. Os
coadjuvantes estão se cansando
(os estadistas europeus hesitam em apoiá-lo em mais uma
operação militar), a platéia está dando sinais de enfado (nos
Estados Unidos e no resto do mundo, o furor beligerante das
massas anda arrefecido), mas não adianta: ainda estamos vivendo o 11 de setembro de 2001.
Agora é assim, a história acontece segundo esse tempo totalizante da TV, um tempo que aprisiona o passado em videoclipes (o que não pode ser esquecido vira presente constante,
como Elvis, que não morreu, e os edifícios do World Trade
Center, que jamais terminaram de afundar no chão) e que retarda o futuro para depois dos intervalos comerciais (agora
monopolizados pelos interesses da indústria bélica). O tempo
na TV não evolui linearmente, mas se sucede em grandes bolhas. O problema é que, às vezes, as bolhas, aparentemente
congeladas, acabam explodindo.
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