|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Ética versus loucura
EUGÊNIO BUCCI
ESTA EDIÇÃO do TV Folha traz uma ótima reportagem de Carla Meneghini sobre a TV Pinel, uma luz de saúde mental na escuridão insana da televisão
brasileira. A TV Pinel é um projeto do hospital psiquiátrico Philippe Pinel, em Botafogo (zona sul do Rio), que
funciona há seis anos. Os programas, produzidos pelos pacientes, tematizam a própria loucura. E é por isso mesmo, por
serem realizados segundo o olhar dos "loucos" sobre o universo dos "loucos", que esses programas representam uma
luz de saúde mental em meio à
doideira desgovernada que dá o
tom da programação da TV comercial que nos confina.
"Loucura", sabemos todos, é
uma noção mais cultural do que
médica; são chamados "loucos"
aqueles cujo comportamento escapa ao que as instituições sociais
são capazes de absorver dentro
do que entendem por padrões de
"normalidade". Os "loucos", lamentavelmente, acabam padecendo sob o preconceito, são tratados como párias. Até outro dia,
eram aprisionados nas clínicas,
sem esperanças de "recuperação" ou de cidadania. O projeto da TV Pinel é parte de um
grande esforço que vem acontecendo no Brasil para amenizar
essa visão conservadora e segregacionista da "doença mental". Antes de tudo, procura livrar os usuários do Hospital
Philippe Pinel do estigma de párias. Fazer TV, para eles, é ao
mesmo tempo um canal de expressão (e de inclusão social) e
um exercício de cura. O que mais chama a atenção nesse projeto, mais que o seu resultado estético ou prático, é a intenção
declarada de seus autores de fazer TV dentro de parâmetros
éticos muito claros, parâmetros que têm, como valor mais alto, o respeito à pessoa.
Chega a ser irônico: os únicos razoáveis nesse grande mundo do espetáculo são os loucos clínicos. Quanto à TV dos sãos,
esta mais parece um festival de surtos psicóticos (no sentido
de que desconhecem os limites postos pela realidade externa,
e só se subordinam à realidade psíquica daquele que delira).
Atenção: não é um filme isolado ou um comercial específico
que lembra um surto psicótico, é a TV comercial como um todo. Tente mudar de canal aleatoriamente, zapeando sem rumo. Uma sucessão de imagens vai se processar diante dos
seus olhos: cenas de sexo, explosões, armas de fogo, gritos,
perversões inofensivas e agressões visuais, uma paisagem bucólica, um cadáver. Essa sucessão se aproxima fortemente da
linguagem dos sonhos ou, mais exatamente, dos pesadelos,
ou, mais exatamente ainda, de
um pesadelo anárquico, sem autor definido. A televisão, vista assim mais de longe, nos mostra
apenas sexo e violência não por
acaso, os vetores fundamentais
do inconsciente.
A televisão pode ser vista como
o desnudamento do inconsciente
que gostaríamos de ocultar. Em
outras palavras, a violência do inconsciente que, no plano individual e racional, todos nós preferimos negar mostra-se inteira e totalitária no plano coletivo e ingovernável do espetáculo. Por princípio, a TV comercial escancara o
que nos envergonha. Por ser antes de tudo uma máquina de
vender e, mais que isso, de vender o prazer do consumo e o
consumo do prazer, ela atira contra nós mesmos o nosso desejo de consumir ao máximo (e de gozar desse consumo), de
ter o que o outro não tem, de privar o nosso semelhante do
consumo que nos torna mais exclusivos do que ele. Por um
estranho paradoxo da atualidade, a televisão, proeza da tecnologia e do avanço da divisão de trabalho, trai o atraso e o
barbarismo das relações selvagens que nos desagregam. A televisão revelou, sem querer, o avesso da civilização: se a civilização seria a vitória da convivência pacífica sobre a selva, ela
descortina a inviabilidade da convivência porque se tornou
um veículo incapaz de pôr o respeito à pessoa acima dos imperativos do mercado e do consumo.
Depois, loucos são os que falam em ética.
Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo Próximo Texto: Filmes Índice
|