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CRÍTICA
O ateísmo como direito
EUGÊNIO BUCCI
HÁ DUAS semanas, critiquei os jogadores da seleção
que fizeram merchandising religioso logo após a vitória sobre a Alemanha. Argumentei que, ao "desvestirem" o uniforme oficial para revelar outra camiseta, que traziam por baixo, com slogans de uma causa religiosa, eles se aproveitaram da visibilidade pública conquistada pelo time nacional para promover convicções particulares.
O que é indevido e invasivo. O Brasil é um Estado laico: nenhuma função de representação do Brasil pode ser apropriada por uma forma de fé. Não é
democrático. Mesmo que essa
fé congregue 99% da população, não é democrático. A minoria não pode ser excluída
nesses momentos de representação nacional. Quando transformaram a festa do pentacampeonato num evento de divulgação de culto qualquer, esses
jogadores usurparam a camisa
oficial que trajavam. Ato contínuo, excluíram das comemorações os brasileiros que não partilham do mesmo culto.
Como era de esperar, recebi
mensagens de protesto. Na verdade, nem foram tantas. Não
mais que 30. O que me chamou a atenção foi que 90% delas vinham de leitores verdadeiramente indignados. Eram textos
violentos que, em resumo, acusavam-me de preconceituoso.
Em respeito aos que me escreveram, aos quais sou grato, em
respeito ao conjunto dos leitores e, finalmente, às opções espirituais de cada um, volto ao assunto. O meu objetivo é deixar
claro que não é preconceito o que me move. Minha crítica não
é contra religião nenhuma: é contra o marketing oportunista
de religiões que vem se repetindo na TV.
A fé, todos sabemos, deixou de ser "uma questão de opção
de foro íntimo", como se dizia antigamente, e passou a ser um
segmento da indústria cultural. Não se trata de um fenômeno
"evangélico" ou "católico" ou "protestante": as seitas eletrônicas têm raízes nas mais diversas tradições místicas; o que as
distingue não é a tradição a que se filiam, mas sua prática discursiva, perfeitamente adaptada ao show de TV. A Rede Record é uma expressão desse fenômeno no Brasil. Padre Marcelo, com as suas especificidades, também é. A fé se tornou
uma modalidade do espetáculo, com as vantagens e desvantagens de comunicação (sagrada ou profana) que isso acarreta.
As teleigrejas se manifestam (e existem) como propagandas
de si mesmas. Para elas, a propaganda não é a alma do negócio: a propaganda é sua razão de ser. É de sua natureza a propensão a ocupar todos campos
da visão social. Acreditam que,
assim, cumprem seu papel e
exercem seu direito. Muitas vezes, porém, invadem o direito de
outros e seus fiéis mal se dão
conta. Um atleta que se declara
diante das câmeras como alguém que "pertence a Jesus" está
apenas exercendo o direito de
professar sua fé. Mas, quando ele
se furta à representação oficial da
qual foi incumbido, a de vestir o
uniforme da seleção brasileira,
num evento oficial, e se aproveita
das câmeras para promover um
determinado culto, comete um abuso. E exclui, com esse gesto, os outros brasileiros que porventura não comunguem da
mesma fé. Mesmo sem querer.
Vivemos uma era de multiplicação de teleigrejas. Deveriam
ser tempos mais plurais, mais arejados, mas não são. Ao contrário, são tempos de intolerância. A fé que só existe como espetáculo supõe-se um sentimento total e não admite contestação. A simples idéia de que não há unanimidades nem Maomé, nem Buda, nem mesmo Cristo é entendida como uma
hedionda heresia pelas teleigrejas. A mera existência de um
ateu se torna uma ofensa. Apenas para efeitos de raciocínio,
imagino a seguinte cena: após a vitória do Brasil sobre a Alemanha, um jogador abre um estandarte onde se lê "Viva o
ateísmo!". Provavelmente seria expulso de campo. E, no entanto, não estaria cometendo uma deselegância pior do que
essa que foi cometida pelos propagandistas de Jesus.
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