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CRÍTICA
A imagem da besta
BIA ABRAMO
QUEM ENTRA em São Paulo pela marginal do Tietê, vindo da rodovia Ayrton Senna, depara-se com
um cartaz altíssimo, fincado no limite entre uma favela e o asfalto, onde, grafada em pesadas letras negras, está a seguinte frase: "A televisão é a imagem da besta".
Podemos rir interiormente da paranóia religiosa, podemos
nos sentir superiores diante da simplicidade do autor anônimo da mensagem, mas há algo nessa asserção que não deveria
nos espantar. Afinal, essa mesma idéia, de que a televisão representa algum tipo de força
maléfica, expressa com palavras menos sensacionais e
com graus variáveis de elaboração intelectual, encontra-se
mais do que disseminada.
"Ópio do povo", aquele eletrodoméstico que teria o poder de nos deixar "burros demais", ou, mais recentemente, o reino ignóbil do que se
convencionou classificar de
"baixaria", não há quem não
se apresse a falar mal da TV.
Como num encantamento às
avessas, soltamos muxoxos
de desprezo e desaprovação
ao ser pronunciada a palavra
televisão numa conversa. Às
vezes, concede-se apreciar
aqui e ali algum programa de
entrevistas metido a inteligente ou algum canal (em geral, da
TV paga) dedicado a documentários ou à emissão de espetáculos da chamada alta cultura (concertos, balés, óperas, filmes
de arte) ou, se vier de alguém mais jovem, de algum seriado
admitido no cânone pop. Ou pode-se também apelar para a
desculpa da "falta de tempo", mas o fato é que a necessidade
de não se deixar confundir por alguém que goste de televisão
sem restrições é imperativa dentro da classe média alfabetizada.
Se, no nível individual, ver televisão não é considerado um
hábito, no mínimo, muito confessável, no âmbito coletivo a
associação entre TV e mal toma ainda mais corpo. Especialistas de várias áreas estudam os efeitos nocivos da televisão em
crianças e jovens -da obesidade à sexualização precoce, da
banalização da violência à degradação do hábito de leitura, é a
televisão responsável por vários males que assolam os corpos
e mentes dos mais jovens. Grupos sociais diversos se assustam e reagem ao uso da TV como veículo de propaganda, seja
pelo governo, pelo mercado, pela religião, pelos fabricantes
de margarina ou de sabão em pó, seja por grupos adversários.
O que há, afinal, de tão
ameaçador na TV que exige
esse posicionamento constante? Talvez uma resposta
venha de admitirmos que o
medo é proporcional ao fascínio: tememos e atacamos a
televisão porque ficamos hipnotizados por ela. O consumo
passivo de imagens, a ligeireza do esforço intelectual exigido e a capacidade de produzir sensações que nos tocam
na superfície dão alguma espécie de conforto emocional
que se tornou mais ou menos
necessário à vida moderna.
Com a desculpa de informar
ou de entreter, a televisão nos
rouba bons nacos de tempo, o
que evita a angústia de se confrontar com a constatação de não ter nada muito mais significativo, interessante ou importante a fazer com ele.
Da boca para fora, entretanto, ver TV permanece como um
hábito deletério, um vício nefasto, um comportamento a ser
regrado, uma fraqueza a ser superada. E, no entanto, em quase todas as casas, pelo menos no Brasil, lá está um aparelho de
televisão, pronto a ser ligado, pronto a transmitir as imagens
da incultura, da violência, da "baixaria" (o que quer que seja
isso), do sentimentalismo, do espetáculo. Em suma, de tudo
aquilo que nos estranha ser tão familiar. É que, no fundo, gostamos, e não pouco, da besta. Ou de ser um pouco bestas?
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