|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Senhores da Guerra
BIA ABRAMO
"A REVOLUÇÃO não será televisionada", dizia
o poeta, músico e ativista pelos direitos civis
Gil Scott-Heron num poema-manifesto (do
disco "Small Talk at 125th and Lenox Ave.",
1970). "Você não vai conseguir ficar em casa, irmão(ã)/ Escapar para uma cerveja durante o comercial/ Porque a revolução não será televisionada", continua. Na perspectiva de
Scott-Heron, haveria uma espontaneidade e um fator subversivo na revolução (ele referia-se à insurgência dos negros contra a sociedade racista) que a tornaria impossível de ser domada
pelo tempo/espaço da TV. Já a
guerra, sobretudo esta ultramoderna que está em questão, começa antes na TV do que no
campo de batalha.
A julgar pelos preparativos do
Pentágono, revelados por Sérgio
Dávila e Alessandra Vitória na
edição passada do TV Folha, está
tudo pronto para que o show não
decepcione ninguém: teremos
imagens infinitamente superiores às que tivemos 12 anos atrás, à
época da Guerra do Golfo, muita
computação gráfica de última geração e, escusado dizer, nenhuma situação constrangedora,
como mortos e feridos civis.
Nada, por exemplo, parecido com a confusão do 11 de setembro, especialmente nos momentos seguintes ao choque
do segundo avião, quando o público foi exposto à contemplação sem mediações da tragédia. Muito menos com imagens
bem mais antigas, de mais de 30 anos atrás, aquelas que mostravam os bravos soldados norte-americanos voltando do
Vietnã em sacos pretos de plástico e que ajudaram a incendiar
os protestos contra a guerra. Não, todos os recursos tecnológicos e ideológicos serão usados para que essa guerra seja limpa e eficiente, adequada para toda a família.
Com todo o controle e toda a profilaxia higiênica, a guerra,
qualquer uma, continua sendo um negócio sujo e confuso. Se
a dimensão trágica nos será negada pelas imagens que o Pentágono vai deixar que conheçamos, digamos que alguns aspectos farsescos, protagonizados pelos principais líderes do
conflito, já foram mostrados pela TV.
Primeiro, foi Saddam Hussein. O iraquiano que escolheu o
experiente Dan Rather, da norte-americana CBS, para conceder uma entrevista. Naquilo que parecia ser apenas um arremedo de democracia ritual, a surpresa: Saddam Hussein propõe um debate com o presidente George W. Bush (e faz graça
com Rather, convidando-o para mediador). O "ditador sanguinário" troca os sinais e faz uma
proposta que o presidente do
"mundo livre" só podia recusar.
Detalhe: a entrevista de Rather com
Saddam Hussein foi assistida por
17,9 milhões de espectadores nos
EUA, segundo o instituto Nielsen
Media Research, que afere a audiência da TV norte-americana.
Bastante, mas menos gente do que
o Grammy (24,9 milhões), o documentário "Living With Michael
Jackson" (27,1 milhões) e a final do
"reality show" "Joe Millionaire"
(34,6 milhões).
Num round intermediário, mas
também emblemático, Tony Blair
submeteu-se a uma coletiva com jovens do mundo todo promovida pela MTV Europa (e exibida pela MTV Brasil no final
de semana passado). A partir da pergunta "a guerra é a única
resposta?", a platéia bem informada, multicultural e majoritariamente pacifista tentou pressionar o primeiro-ministro inglês e principal aliado de Bush, mas os constrangimentos da
produção -tempo, organização e uma incrível disciplina dos
participantes- deixaram o debate frio e protocolar.
Por fim, no início da semana passada, horas antes de fazer
seu ultimato a Saddam Hussein, Bush aparece nos jardins da
Casa Branca, brincando com seus cães e, numa metáfora tão
deselegante quanto precisa, mostrando o traseiro para o
mundo inteiro ao abaixar-se para pegar uma bolinha.
E-mail: biabramo.tv@uol.com.br
Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo Próximo Texto: Filmes e TV paga Índice
|