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São Paulo, domingo, 25 de maio de 2003

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CRÍTICA

Na boléia, com Pedro e Bino

ARMANDO ANTENORE

SEMPRE me impressionou a longevidade de Pedro e Bino, os caminhoneiros que protagonizam "Carga Pesada". Conheci-os no início da adolescência, em 1979, quando a Globo lançou o seriado. À ocasião, um time de peso assinava o roteiro: Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri, Walter George Durst, Carlos Queiroz Telles.
Eram narrativas que me soavam perfeitas. Tinham muita aventura, mas também um tom humanista, quixotesco, de indignação com as mazelas sociais do país. E tudo sob roupagem francamente brasileira, que tentava responder à invasão dos enlatados norte-americanos.
Houve um episódio em que seis ou sete bandidos fugiram a nado de uma ilha-presídio. Logo que chegaram à praia, avistaram uma Kombi e, claro, a sequestraram. O carro estava abarrotado de cebola e cerveja. Quentes. Os criminosos, porém, refestelaram-se. Beberam e comeram feito reis. À exceção de um, que, cabisbaixo, lamentava: "Não gosto de cebola. Não gosto de cebola". Nunca o esqueci, símbolo involuntário da televisão coloquial, não raro irreverente, quea década de 70 se empenhavaem produzir.
O facínora que detestava cebola... Talvez não detestasse tanto assim. Olhos de meninos, agora aprendi, costumam trair as lembranças dos adultos. Imprecisões à parte, o fato é que o moleque não perdia um capítulo.
Numa noite de 1981, "Carga Pesada" simplesmente saiu de cena -como, em breve, sairia o menino. Morreu o seriado, mas a dupla de heróis persistiu. Quantas vezes, nos anos seguintes, Pedro e Bino ressurgiriam, risonhos, em botecos e oficinas mecânicas, ilustrando propagandas de autopeças. Quantas vezes saudosistas de plantão evocariam os carreteiros para rebater um desavisado que se punha a elogiar estréias da TV: "Você diz isso, mané, porque não viu aquele outro programa, o de Pedro e Bino".
Qual o motivo de tamanha resistência? Que elixir garantiu aos personagens o dom de sobreviver, se frequentavam uma mídia tão fugaz, tão volúvel? Procurei as respostas na versão atual da série, que a Globo exibiu até terça-feira. Ali, Pedro (Antonio Fagundes) e Bino (Stênio Garcia) continuavam soltos como antes. Senhores das horas e do espaço. Livres.
Embora estivessem trabalhando, jamais se deixavam oprimir pelo dever. Faziam o que lhes dava na telha. Traçavam uma rota -e a alteravam caso o caminho sugerisse opção melhor. Ouviam a voz da estrada, à moda dos velhos beatniks.
Eis, quem sabe, uma das iscas que fisgaram para sempre os telespectadores daquele tempo. Pedro e Bino incorporavam, de um jeito bastante particular, o espírito "easy rider" que tanto marcou a geração da contracultura e que ainda ressoava no começo dos anos 80. A própria música-tema do programa -interpretada, primeiro, por Renato Teixeira (o autor) e regravada, hoje, por Chitãozinho & Xororó- não cansava de exaltar a divisa quase anárquica: "Eu conheço as minhas liberdades/ Pois a vida não me cobra o frete". Note-se que tal elogio ocorria num instante em que o regime militar baixava a guarda, o que potencializava o caráter sedutor da mensagem libertária.
A canção de Teixeira, aliás, mexia em outro ponto caro à década de 70: "Eu conheço todos os sotaques/ Desse povo todas as paisagens/ Dessa terra todas as cidades". Ecoando os versos, Pedro e Bino se gabavam de percorrer o país inteiro: as metrópoles e as vilas, o litoral e os sertões. Com simplicidade, concretizavam a utopia grandiosa da integração nacional. Um sonho que a ditadura alimentou, uma parcela razoável da população acolheu, e a Globo, de certa maneira, realizou (sobretudo quando se transformou em rede). Novamente, portanto, os dois caminhoneiros transportavam não apenas grãos ou minérios. Carregavam também a alma de uma época.

A COLUNISTA BIA ABRAMO ESTÁ EM LICENÇA


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