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CRÍTICA
A revelação dos desesperados
EUGÊNIO BUCCI
O APRESENTADOR Sérgio Mallandro, da TV Gazeta,
atravessou a parede. Sua "Festa do Mallandro", que
vai ao ar nas noites de sábado, tinha batido a cara no
muro. Não tinha mais para onde ir nem para onde
baixar. Era o fim da linha. Era o "supertrash" total, era a falta
de recursos, de idéias e de princípios transformada em desperdício de nada. Era o exagero da carência, a opulência da
miséria, a apoteose do apoplético. Debatia-se contra a fronteira final, o limiar do impossível, a parede derradeira que nos
separa do fim do mundo. E, no entanto, eis que Sérgio Mallandro atravessou essa parede.
Feito um espectro. Feito uma lente objetiva. O que começa a aparecer do outro lado é o impensável
e, no entanto, aparece.
O que aparece é a "Casa dos Desesperados", essa paródia pútrida
dos "reality shows" que hoje grassam na TV como grassam as propagandas de remédio. "Casa dos
Desesperados", em outros tempos, seria talvez um filme do Zé
do Caixão. Agora é um show comercial. O cenário é uma casa alugada. O elenco é o antielenco: um
anão, um halterofilista, um travesti, um sósia de Tim Maia, um
homem obeso, muito obeso, sem camisa. Ele come uma leitoa
assada sem usar talheres. Come-a com as mãos. Os outros urram. Consta que todos estão mortos de fome. Boca do lixo do
terror. De repente, um senhor invade a sala. Ele é grisalho, de
barba idem, camisa branca, já meio para fora da calça, ainda
de gravata, alguém que se diz vizinho, berrando. Quer silêncio
para descansar, pobre homem irado. Igualmente de repente,
o apresentador entra no meio (como é que Sérgio Mallandro
foi sair do auditório e aparecer ali no meio?). Todos trocam
insultos, safanões, palavrões e apitos (aqueles sinais agudos
de termos censurados na fala dos desesperados). Xingamentos à mancheia. Um país se faz com fomes e lixos.
A primeira reação do telespectador é descartar a coisa logo
de cara: "Ora, isso aí não passa de uma excrescência apelativa,
é tudo armação de mau gosto". E aí vem a revelação. O lixo-realismo exacerbado de "Casa dos Desesperados" corrói e desautoriza o pretenso realismo chique dos "reality shows" oficiais, como os da Rede Globo. Olhe agora um "reality show"
da Globo e ele se parecerá um festival de carinhas e boquinhas
fingidinhas. Aqueles rostinhos recortadinhos, aqueles bumbunzinhos moldadinhos, aqueles cabelinhos tingidinhos e
aquelas confissõezinhas idiotinhas de intimidadezinhas adestradas. Sérgio Mallandro fez desmoronar essa impostura.
Atropelou os competidores bonitinhos, higienizadinhos e ensaiadinhos e escancarou o que está
atrás daquelas paredes e daqueles
espelhos falsos. Mostrou os carregadores de fios, o maquiador subempregado, o sujeito que desentope a privada, o mendigo, o morador de rua; mostrou a periferia
suja que produz as encenações
globais, tão limpinhas. Pior: fez tudo isso sem querer. Ele, que só
queria tirar sua casquinha, desnudou o rei, ou melhor, desnudou o
realismo fingido dos "reality
shows" milionários.
Na tentativa de levar a exploração da miséria humana até seu limite mais desumano, Mallandro
produziu involuntariamente uma chanchada bestial. Sua
"Casa dos Desesperados" parece mesmo um teatro mal disfarçado, tudo ali é de mentira e, mesmo assim, descortina
uma verdade maior que ela mesma: todos os "reality shows"
são aquilo, nada têm de realidade, não passam de uma cartada do desespero, seja o desespero das emissoras pela audiência, seja o desespero de seres que trocam uma intimidade puída por um pingo de fama, seja o desespero solitário dos que
salivam enquanto sorvem desse espetáculo pela TV. E, sempre, um desespero mediado pela falsificação. Entre todos, a
"Casa dos Desesperados", integralmente fajuta, é a mais autêntica. Em sua incomensurável imundície, revela o que os
outros escondem embaixo do tapete. Ou da saia. Ou atrás da
porta de serviço.
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