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CRÍTICA
Uma guerra com roteiro
BIA ABRAMO
NO DIA seguinte ao início da guerra contra o Iraque, a
rede norte-americana ABC dedicou seu horário dito
nobre (das 20h às 23h) à cobertura da guerra e perdeu para a NBC, que preferiu manter sua programação de entretenimento. Exibiu uma reprise do seriado
"Friends" e, com isso, atraiu 4 milhões a mais de norte-americanos do que aqueles que estavam assistindo ao noticiário de
guerra. Os números foram divulgados por agências de notícias e publicados em vários veículos de comunicação.
Claro, há um dado de escapismo evidente: parte do poder da TV reside em funcionar
como uma espécie de droga,
como uma maneira de estar
desperto sem estar realmente
acordado ou, para usar uma
palavra desgastada, mas ainda
pertinente, de alienar-se. Logo, parece razoável que a ficção ganhe da realidade.
Mas no caso desta guerra
contra o Iraque, em que a ficção urdida no Pentágono tenta
se impor à realidade, pode-se
supor que, naquela noite, os
norte-americanos estavam, na
verdade, escolhendo entre
dois tipos de ficção. E, em
maior número, preferiram o já
testado ao ainda incerto. Como entretenimento, um episódio
já exibido de "Friends" vale mais do que uma reprise da Guerra do Golfo.
Dias depois, na 75ª cerimônia de entrega do Oscar, o jornalista e cineasta Michael Moore, que levou o prêmio de melhor
documentário de longa-metragem com "Bowling for Columbine", aproveitou o discurso de agradecimento para protestar
contra a guerra. Diante de milhões de espectadores em todo o
mundo, Moore convidou os outros indicados a subirem ao
palco e, brandindo seu homenzinho dourado, disse: "Todos
nós gostamos de documentário, mas vivemos num tempo de
ficção, com resultados eleitorais fictícios, um presidente fictício... Estão nos enviando à guerra por razões fictícias."
O "tempo de ficção", que elegeu Bush e produziu a guerra,
segundo Moore, invadiu o telejornalismo. A cobertura da
guerra das TVs norte-americanas parece seguir um roteiro já
escrito, cabendo aos jornalistas apenas captar as imagens que
servem para ilustrá-lo -as que não cabem no roteiro, como,
por exemplo, as das manifestações pacifistas, particularmente
nos EUA, vêm sendo sistematicamente ignoradas ou relegadas a terceiro plano pelas emissoras. As imagens ao vivo, mesmo que não façam nenhum
sentido, seja porque a qualidade segue sofrível na maioria dos casos, seja porque a
narração do jornalista, via de
regra, é incapaz de explicar e
interpretar o que está, de fato, acontecendo, não saem
da tela, como se o registro da
realidade fosse ela mesma.
O tal do tempo real que as
TVs se esforçam em apreender entra em choque com
outro recurso usado à exaustão na cobertura extensiva
da guerra: a repetição de
imagens impactantes, muitas vezes descontextualizada.
No dia dos "mil mísseis" sobre Bagdá, a formação rosa-alaranjada de fumaça, chamas e fagulhas que subiu quando
uma bomba mais potente explodiu bem diante das câmeras,
foi, à força da repetição, perdendo sua capacidade de informar: virou mera ilustração.
O interessante desta guerra é que, apesar dos esforços do
Pentágono em impor sua versão ficcional, a realidade vem escapando por várias frestas. Quem acreditou no conto de carochinha da guerra rápida, precisa, eficiente, com poucas baixas, em que os invasores seriam recebidos de braços abertos
pelos invadidos, já está sendo atropelado pelos fatos.
E-mail: biabramo.tv@uol.com.br
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