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Sonho de uma noite de verão
Dono de Fusca 1979 narra os 20 dias que passou com a releitura do automóvel mais famoso da história, que acaba de ser lançado no país
Duas referências opostas moldaram a memória automobilística da minha geração, nascida nos anos 1970: o Herbie de "Se Meu Fusca Falasse" e a máquina do tempo de "De Volta para o Futuro".
Era uma época em que os carros tinham "personalidade", e esses encarnavam dois modos de vida: o velho Volks e sua mecânica simples e poética; o DeLorean movido a plutônio com que Marty McFly visita seus pais em 1955 e seu design futurista.
Sem oportunidade de comprar o DeLorean, acabei arrematando em 2008 um fusquinha bala, com 80.000 km rodados, de uma amiga que se desfez dele em lágrimas.
Na época, meu gesto só foi compreendido pelas crianças -elas adoram Fuscas, e rapidamente meu carro se tornou ponto de peregrinação dos filhos dos amigos. De nada adiantaram os apelos da minha família sobre segurança, tecnologia e status social.
De carona comigo, meu pai chegou a ser indagado por um manobrista da Casa Fasano, no Itaim, se ele estava ali "para prestar serviços".
Não: ele era convidado da cerimônia de entrega de um dos mais importantes prêmios literários do país.
Eis que, neste verão, por magros 20 dias, tive uma experiência próxima à de McFly em seu DeLorean: pus à prova o bólido que a Volkswagen acaba de relançar com o nome que o consagrou no país. O novíssimo Fusca, de fabricação mexicana, pouco tem a ver com o que entendemos pelo antigo VW.
A começar pelo nome. Ao preço de quase R$ 80 mil, logo percebemos que não estamos exatamente num "carro do povo", tradução do nome da montadora alemã.
Se ao guiar um fusquinha a impressão é de estar no puro domínio da mecânica, sentindo na ponta do pedal a emoção de cada freada, a adrenalina de cada aceleração, no Fusca do século 21 a experiência é a certeza de entrar de vez no mundo digital.
SEM GRAXA
De fato, o novíssimo Fusca não tem graxa nenhuma. Nem mesmo a chave se submete aos caprichos da mecânica: basta se aproximar do carro, com ela no bolso, para que as portas se destravem.
Brioso, comia o asfalto a cada sinal que se abria, transformando-me em playboy involuntário, cantando os pneus por não saber dosar o pé em tão potente acelerador.
Na ruas, o carro atraía a atenção de basbaques que me olhavam atrás de cumplicidade -em geral, tigrões já grisalhos em busca de uma máquina vistosa e de um mundo de aventuras.
"Quanto? 80 paus? E aí, gostou? O meu chega em fevereiro!", exclamou um deles, jovial, a bordo de um BMW. Falava como se fôssemos sócios do mesmo clube. Envergonhado, expliquei que o veículo não é meu etc., mas recomendei o carrão.
Já no meu velho Volks 1979, só sou abordado por frentistas e manobristas de olhos brilhando, que sonham em talvez poder comprá-lo e de vez em quando fazem ofertas. Não vendo, é claro.
Ainda mais agora, que equipei o bravo VW 1300 com amplos retrovisores de Kombi 1975 -presente do tio Beto, dono de sucessivos Fuscas e meu guru nessa matéria.
Como dá para perceber, não sou exatamente um fetichista que vive na fissura de manter o carro todo original. Se andar de carro ainda tem graça em São Paulo, que seja num carro alegórico: meu amado fusquinha escarlate. Ou, então, nesse foguetinho em que, por breves 20 dias, vivi o sonho de uma noite de verão.