São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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JANIO DE FREITAS

A outra indigência

Uma regra que sempre vigorou no Brasil, e nos últimos oito anos foi levada a extremo inédito fora dos nossos regimes ditatoriais, é a de que só os detentores de riqueza, empresarial ou pessoal, têm reconhecido o direito de defender os seus interesses (ainda que ilegítimos, em inúmeros casos). Aos assalariados, ao funcionalismo público, aos aposentados da vida árdua, aos detentores de sentimentos nacionais e a tantos e tantos, a defesa dos seus interesses foi sempre negada com a intransponível barreira das desqualificações conceituais -perturbadores da ordem,corporativistas, nacionalistas, agitadores e, nos últimos anos, retrógrados, neobobos, burros, ainda corporativistas, e outras idiotices de inegável eficácia.
Assim o Brasil se tornou um país sem debate. E, portanto, sem idéias, porque o espaço das idéias em confronto foi entregue, cada vez mais, ao empobrecimento de todas as manifestações da inteligência, da criatividade e da cultura. Tal indigência nada deve hoje, em dramaticidade, à indigência social -e é ainda muito maior, é total. Não se restringe à temática da política ou da administração: em 175 milhões de habitantes, não há em atividade mais do que um ou dois críticos literários no sentido pleno da denominação. Para não falar da própria produção literária. Não precisaria dizer mais, não fosse o exemplo da euforia quando surge um filme brasileiro, UM, que permita sair do cinema sem o sentimento da humilhação não devida.
O Brasil está saindo de um período em que as intenções sociais do governo foram apenas retóricas. Quase todas muito bem pagas com o dinheiro dos cofres públicos -arrecadação feita sobretudo ao bolso trabalhador- posto nas múltiplas formas de propaganda, e não nas urgências sociais.
Um projeto de mudança não pode, porém, prescindir do debate. Em vez de tudo se decidir, como no governo Fernando Henrique Cardoso, entre o palácio presidencial e os parlamentares comerciais de votos, em negação da democracia como confronto decisório das idéias e interesses difundidos na sociedade, o novo governo só poderia começar um projeto de fato inovador, no rumo da democracia, pelo debate amplo e respeitado.
Em um dos três ou quatro grandes discursos de posse ministerial, Luiz Dulci, secretário-geral da Presidência, foi ao tema da audiência à sociedade, como, por outras vias, também fizeram José Dirceu e Gilberto Gil, dois outros discursos altos. Importa agora, então, maior clareza sobre o que está entendido como debate e como os novos governantes pensam em introduzi-lo, para enfim dar oportunidade real de voz aos silentes.
Está anunciada a precedência de duas reformas: a da Previdência e a tributária, ou do sistema de impostos. Ambas têm implicância social gigantesca. Pelo que está insinuado pelo ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, e pelo presidente do PT, José Genoino, pode-se deduzir o propósito, velado embora, de direitos que não figuram entre as extravagâncias de certas aposentadorias.
Pelo que está insinuado por Antonio Palocci, sua visão da Receita Federal é dar continuidade aos ímpetos da arrecadação produzida por Everardo Maciel, cuja permanência teria mesmo desejado. Mas a Receita é um fortíssimo instrumento para justiça social, tão forte quanto tem sido para a injustiça. Sua função apenas arrecadadora só existe nos regimes ou para os governos em que os assalariados são os mais amputados pelo Imposto de Renda e outros impostos, enquanto a renda, propriamente dita, usufrui dos favorecimentos.
O debate verdadeiro que haja, ou não, em torno desses projetos prioritários será decisivo para definir a natureza do governo Luiz Inácio Lula da Silva.



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