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ARTIGO
Professor na Universidade Rutgers e autor de uma biografia de FHC, Ted Goertzel acredita que petista fará "um governo de continuidade, com mudanças modestas e bem ponderadas"
O legado de FHC e o Brasil de Lula
TED GOERTZEL
ESPECIAL PARA A FOLHA
A posse de Luiz Inácio Lula
da Silva como presidente
do Brasil é um marco histórico.
Pela primeira vez, um homem
com origem na classe trabalhadora e inclinações políticas de esquerda assume o comando do
maior país da América Latina. A
eleição de Lula e a transição suave
de governo validam o sistema democrático brasileiro e dão à esquerda do Brasil, há muito frustrada, uma chance de colocar em
prática as suas idéias. Durante a
campanha eleitoral, o PT de Lula
prometeu romper com as políticas "neoliberais do Consenso de
Washington", que predominaram na América Latina por pelo
menos uma década. Se eles conseguirem êxito na implementação
de um novo modelo econômico,
será um precedente importante
para a América Latina e para os
países em desenvolvimento.
Mas obstáculos políticos e econômicos não deixam muita margem de manobra. Antes de assumir, Lula advertiu os brasileiros
de que o primeiro ano de seu governo seria austero. Culpou a administração precedente por sobrecarregar o país com dívidas.
Mas culpar os líderes passados
não resolve nada. Lula e o PT prometeram aos brasileiros que serão
capazes de mudar o modelo econômico do país de forma a acelerar o crescimento, reduzir a desigualdade e melhorar a qualidade
de vida. O que é provável que façam e que chances de sucesso eles
têm?
Ainda que o PT tenha reputação
como crítico da economia de
mercado, isso é em larga medida
coisa do passado. O partido conseguiu ganhar a eleição presidencial de 2002 deixando para trás
seu passado radical e adotou posições políticas bastante semelhantes às da administração precedente. Lula perdeu as disputas presidenciais de 1989, 1994 e 1998 em
larga medida porque era radical
demais para a maioria dos eleitores brasileiros. Em 1989, o vencedor foi Fernando Collor, jovem
governador de Alagoas. Collor seduziu o eleitorado com promessas, pronunciadas suavemente, de
pôr fim à inflação e à corrupção.
Mas sua política de combate à inflação fracassou, ele sofreu um
processo de impeachment por
corrupção e renunciou.
O poder foi então transferido a
Itamar Franco, um político tradicional que não compreendia o
problema da inflação. O PT tampouco dispunha de um plano para derrotar a inflação, a despeito
de contar com dezenas de economistas e intelectuais brilhantes.
Desesperado, Franco pediu que o
sociólogo Fernando Henrique
Cardoso, ministro das Relações
Exteriores, assumisse a pasta da
Fazenda. Para espanto de todos,
Cardoso montou um plano que
efetivamente pôs fim à hiperinflação. O feito garantiu sua vitória
eleitoral em 1994, frustrando Lula
e a esquerda uma vez mais. Por
volta de 1998, o plano antiinflacionário estava em crise e a esquerda
acreditava que as políticas de FHC
tinham fracassado, como as de
Collor. Mas os eleitores estavam
assustados demais para mudar o
comando no meio de uma tempestade, e Cardoso surpreendeu a
todos uma vez mais levando seu
país a uma nova vitória sobre a
crise.
Em 2002, Lula e o PT se viram
forçados a admitir que muitas das
políticas de Cardoso estavam funcionando melhor do que eles esperavam. Estavam cansados de
perder, de modo que decidiram
fazer as mudanças necessárias para uma vitória. Adotaram uma
plataforma próxima à do PSDB
de Cardoso, Lula passou a usar
ternos elegantes e a falar de maneira reconfortante. O mais importante é que ele prometeu honrar os compromissos que o Brasil
assumira com o Fundo Monetário Internacional (FMI), entre os
quais o controle dos gastos do governo e o pagamento em dia do
serviço da dívida. Ele participou
de incontáveis reuniões com líderes empresariais, garantindo que
comandaria a economia capitalista do Brasil melhor do que os capitalistas vinham fazendo.
Com essas mudanças, o PT passou a ocupar o mesmo espaço político do PSDB. Mas a história de
Lula como líder sindical e as raízes do partido entre os ativistas da
esquerda católica e entre os socialistas lhe propiciam maior credibilidade. Os militantes do PT têm
uma notável tradição de compromisso para com o partido. Os demais partidos brasileiros são em
larga medida alianças temporárias de políticos independentes.
Assim que o PT abandonou sua
retórica radical, os eleitores o acolheram com alegria.
Ao mesmo tempo em que Lula
dava segurança aos empresários e
à classe média quanto à sua responsabilidade, apelava aos impulsos populistas com promessas
de mudar o "modelo econômico"
do país, reduzir a inflação e as taxas de juros, cortar o desemprego
e estimular o crescimento. Ele
prometeu acabar com a fome, declarando que a aspiração de sua
vida seria realizada quando cada
brasileiro tivesse três refeições
diárias. Lula prometeu reforçar a
reforma agrária, distribuindo ainda mais terras que Cardoso, sem
deixar de proteger o ambiente e
de garantir os direitos dos povos
indígenas brasileiros.
O principal oponente de Lula,
José Serra, do PSDB, tentou colocar em destaque a natureza vaga
das promessas de Lula e oferecer
planos mais específicos. Mas os
eleitores não queriam ouvir falar
de dificuldades. Estavam procurando por inspiração, empatia, alguém com uma visão positiva do
futuro. Preferiram suspender
suas dúvidas, esperando que de
alguma maneira Lula se mostre
capaz de cumprir suas promessas
e confiantes de que fará o melhor.
A estratégia eleitoral do PT obteve sucesso retumbante. No segundo turno, em 27 de outubro,
Lula obteve 61% dos votos. Seus
partidários dançaram nas ruas de
São Paulo. Mais importante foi o
entusiasmo geral demonstrado
pela sociedade. Todos desejaram
muita sorte a Lula. Fernando
Henrique Cardoso, que não atacou Lula na campanha, disse que
estava emocionado com a eleição
de um líder da classe trabalhadora.
O júbilo em São Paulo se assemelhava ao de Caracas em 1998 e
ao de Lima em 2001, quando
maiorias esmagadoras elegeram o
populista Hugo Chávez e o social-democrata Alejandro Toledo. Esses líderes prometeram mais do
que poderiam cumprir. Agora
Chávez enfrenta tentativas de golpe e greves gerais, enquanto a
aprovação de Toledo nas pesquisas de opinião caiu a 30%, ante
60% um ano atrás. Lula sabe que
enfrenta risco similar. No fim da
campanha, quando o entusiasmo
popular estava no
auge, ele começou
a alertar que não
seria capaz de fazer milagres e que
seria preciso tempo para que suas
políticas dessem
frutos.
Os brasileiros
darão tempo a Lula, mas um dia ele
terá de cumprir as
promessas de
maior prosperidade, especialmente
para os mais necessitados. Felizmente há diversas
coisas trabalhando em seu favor.
Seu partido é mais
sofisticado e tem
organização melhor do que a de
qualquer agremiação latino-americana, e seus assessores são altamente competentes. Embora o Brasil enfrente
grandes desigualdades sociais e
raciais, não há polarização política quanto a essas questões. A comunidade financeira internacional está ansiosa pelo sucesso do
Brasil, e o FMI concedeu uma linha de crédito generosa. Embora
Lula não tenha maioria no Congresso, a oposição é responsável e
está disposta a cooperar, ainda
que o PT se tenha mostrado muito menos cooperativo em seus
dias de oposição. Talvez o mais
importante, o Brasil já concluiu
reformas estruturais, componente essencial para o sucesso de Lula
que jamais poderia ter sido realizado sob um presidente do PT.
Lula tem de agradecer ao seu rival, Fernando Henrique Cardoso,
por muitas reformas difíceis e essenciais, que ora lhe dão a capacidade de governar efetivamente.
Além de pôr fim à hiperinflação e
manter a disciplina fiscal e monetária em meio a algumas crises internacionais muito sérias, Cardos
conseguiu que o Congresso aprovasse uma Lei de Responsabilidade Fiscal que controla severamente os gastos dos governos locais,
estaduais e federal, um contraste
importante com a vizinha Argentina. Ao assumir dívidas estaduais
e proteger a moeda, porém, ele
elevou a dívida interna e levou as
taxas de juros a
um nível que limita as opções do
país. Estatais ineficientes foram privatizadas, entre as
quais bancos estaduais que alimentavam a inflação
com empréstimos
irresponsáveis aos
governos dos Estados. A administração civil foi reduzida e modernizada.
O PT contestou
ferozmente a
maioria dessas reformas durante os
oito anos do governo Cardoso.
Atacou o presidente como "neoliberal" e insistiu
que o país se sairia
melhor com um
modelo econômico que "tomasse
por eixo o social",
dando mais peso
às necessidades humanas do que
aos banqueiros e grandes empresas. Argumentavam que o Brasil
poderia ter crescido com mais rapidez durante os anos Cardoso se
planejadores governamentais tivessem exercido mais controle
sobre os interesses empresariais.
A plataforma do PT assevera, otimisticamente, que o Brasil tem
"vocação" para crescer à taxa de
7% ao ano, e culpa os "neoliberais" por não permitirem que isso
ocorra.
Os brasileiros gostariam de
acreditar que uma mudança de
política econômica seria capaz de
trazer de volta o crescimento econômico acelerado que o país experimentou na era do "milagre
brasileiro", nos anos 60 e 70. Foram as décadas de ditadura militar, e as Forças Armadas brasileiras acreditavam em forte orientação da economia pelo Estado, como o PT faz agora. De fato, a plataforma do PT expressa notável
nostalgia pelas políticas econômicas da ditadura militar.
Mas não existem milagres na
economia. O "milagre brasileiro"
foi alimentado por empréstimos
excessivos de petrodólares e por
gastos inflacionários do governo.
Isso gerou a hiperinflação e a "década perdida" dos anos 80. O Brasil não acumula a poupança interna necessária a sustentar um crescimento de 7% ao ano. A única
maneira de gerar crescimento rápido e sustentado seria um influxo maciço de investimento estrangeiro, exatamente o que Cardoso tentou fazer, sob as críticas
virulentas do PT.
O Brasil já tentou planejamento
governamental no passado, com
resultados desastrosos. Os problemas de eletricidade em 2001 se
devem em larga medida a planejamento falho de estrategistas governamentais que confiaram demais na energia hidrelétrica. Nos
anos 70, o governo decidiu converter boa parte da frota automobilística brasileira ao álcool etanol, antecipando uma crise mundial do petróleo. Mas os preços do
petróleo caíram e causaram colapso do mercado de carros a álcool. Nos anos 80, o Brasil protegeu o mercado interno de computadores contra a competição internacional. Com isso, o país perdeu a chance de se tornar um participante importante da indústria
mundial de computadores.
Evidentemente, os empresários
também cometem erros. Mas optar por um sistema de planejamento governamental é arriscado
e gera o custo adicional dos funcionários públicos necessários a
administrar os planos. Um sistema que dá poderes ampliados a
servidores também cria novas
oportunidades de corrupção. Na
era militar a corrupção era descontrolada, a despeito da suposta
disciplina e patriotismo das Forças Armadas. O PT acredita que
pode controlar a corrupção, e tem
um bom histórico quanto a isso
nos Estados e municípios que governou. Mas aumentar os poderes
de funcionários do governo em
um país com a cultura e a história
do Brasil é sempre um risco.
Cardoso reduziu a inflação e
modernizou a economia forçando as empresas brasileiras a concorrer com produtos importados
e vendendo estatais ineficientes.
Isso teve um custo inevitável em
termos de desemprego, já que os
empregadores cortaram seus
quadros. Mas era uma providência necessária para dar competitividade à economia brasileira, e os
líderes do PT entendem o fato,
embora se tenham oposto às medidas quando foram anunciadas.
O PT não quer voltar ao protecionismo. Propõe aumentar o nível
de emprego reanimando as indústrias brasileiras de bens de
consumo, por meio de crédito barato e incentivos. Mas os recursos
necessários só estarão disponíveis
caso a economia
esteja crescendo
rapidamente.
Com tudo tão dependente do crescimento, o PT não
pode fazer nada
para alienar a comunidade empresarial brasileira e
internacional.
Na campanha,
Lula culpou Cardoso por tornar o
país vulnerável demais ao capital especulativo, boa
parte do qual saiu
tão rápido quanto
tinha chegado, em
resposta às crises
mundiais. Lula
prometeu impor
controles ao capital especulativo.
Essa é a posição
dominante hoje,
advogada pelo
Chile e Cingapura, e até mesmo
pelo FMI, de modo que alguns
controles podem ser instituídos,
no papel. Mas eles serão em larga
medida simbólicos porque o mercado interno não é capaz de fornecer recursos suficientes para o
crescimento que o país espera e
precisa. Se Lula quer cumprir suas
promessas, precisará atrair investimento estrangeiro, como Cardoso. Não pode recusar investimentos simplesmente porque o
dinheiro deixará o país se as condições mudarem.
Se Lula não conseguir reduzir o
desemprego com rapidez suficiente, por meio do crescimento
da economia, haverá forte pressão política para que empregos
sejam preservados por meio da
proteção do mercado brasileiro
contra a concorrência estrangeira
e pela contratação de mais funcionários pelas estatais. Isso apelaria
aos sentimentos nacionalistas e
poderia ser facilmente justificado
como retaliação pelas medidas
protecionistas adotadas pelos
EUA para seus mercados de aço,
suco de laranja e outras commodities. Mas uma retomada do protecionismo representaria um revés para os esforços brasileiros de
criar uma economia altamente
produtiva e competitiva internacionalmente.
Um exemplo inicial do tipo de
pressão que Lula terá de enfrentar
vem de Itamar
Franco. Como governador de Minas
Gerais, decidiu
que pagar a dívida
do Estado era problemático demais.
Os bancos podiam
esperar. Ele preferia manter em dia
os salários dos
professores e policiais. Anunciou
com orgulho sua
recusa de pagar a
dívida do Estado
junto ao governo
federal, o que deflagrou a crise financeira brasileira
de 1999.
Cardoso encarou o desafio de
Franco, forçou a
aplicação da Lei de
Responsabilidade
Fiscal e superou a
crise. Ao fazê-lo,
Cardoso pôs fim
às esperanças presidenciais de Franco em 2002, de
modo que o governador apoiou
Lula nas eleições. Tão logo Lula
foi eleito, Franco pediu que ele declarasse que os Estados não teriam de pagar suas dívidas para
com o governo federal. Os Estados brasileiros têm um longo histórico de acúmulo de dívidas, e
sempre esperam que o governo
federal opte por imprimir dinheiro para pagá-las. Isso permite que
os Estados paguem seus funcionários, mas cria inflação que solapa o padrão de vida dos pobres.
Lula, sabiamente, se recusou a fazer qualquer promessa desse tipo.
continua...
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