São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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A melhor maneira de criar empregos seria desenvolver novas indústrias orientadas à exportação. Sob a teoria econômica do PT, o Estado deve selecionar os setores mais promissores e usar seus recursos para promovê-los. Mas o Estado não dispõe de muitos recursos, e há muitas demandas a atender. Que setor os planejadores favoreceriam? A única sugestão na plataforma do PT é a tecnologia de computação. É uma escolha óbvia para servir de ponta-de-lança ao desenvolvimento no século 21, mas o Brasil ainda não se recuperou da última tentativa de regulamentação estatal do setor de computadores. O legado daquela política fracassada persiste na forma de preços altos dos computadores montados no país com componentes importados.
Embora a alta tecnologia seja mais importante para o futuro do Brasil, o PT prefere falar sobre reforma agrária. A força dominante aqui é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. O movimento promoveu sua causa com eficiência, no Brasil e no exterior, mas a estratégia econômica que defende é falha. O problema é que subsidiar pequenos agricultores simplesmente custa caro demais. A verdadeira luta não é pela terra, que está amplamente disponível, mas por subsídios. Sem eles, a reforma agrária serve apenas para criar favelas rurais. Países ricos da Europa e da América do Norte têm como arcar com subsídios a pequenos lavradores, mas os recursos brasileiros são muito mais limitados.
As fazendas de maior porte são muito mais produtivas, mas a esquerda anticapitalista as ataca como exploradoras. Houve disputas renhidas entre os proprietários rurais e os sem-terra que acreditam que têm o direito a receber terras e os subsídios necessários a explorá-las. O governo Cardoso modernizou a burocracia da reforma agrária e acelerou consideravelmente o assentamento de famílias, a um custo considerável. Mas o MST espera que Lula faça mais. Querem deixar a agricultura comercial de exportação e partir para pequenas fazendas e produção sustentável voltada ao mercado interno. Mas o Brasil simplesmente não pode cortar suas altamente lucrativas exportações de bens agrícolas.
Outra questão que terá de ser enfrentada rapidamente é a reforma da Previdência, um problema que Cardoso foi politicamente incapaz de resolver. Trata-se de uma questão difícil para o PT porque o conflito não opõe capitalistas ao proletariado, e sim contribuintes e funcionários públicos. A Previdência brasileira oferece benefícios muito modestos para a sociedade em geral, mas muito generosos aos funcionários. O Brasil gasta mais com servidores públicos aposentados do que com saúde, educação e segurança pública combinadas. As funcionárias públicas podem se aposentar a partir dos 48 anos, e os funcionários a partir dos 53, com direito a pensões equivalentes a 100% de seu último salário. A oposição de sindicatos de funcionários públicos bloqueou os esforços de reforma de Cardoso.
Lula fez da reforma da Previdência uma de suas prioridades iniciais, e seu histórico lhe dá credibilidade para levar o projeto adiante, se é que alguém será capaz de executar essa tarefa. Mas os funcionários públicos são um dos baluartes do PT, e eles esperam que Lula reponha as perdas que sofreram no governo Cardoso. Lula prometeu manter os "direitos adquiridos" dos atuais servidores. Isso significa que, durante uma ou duas décadas mais, boa parte dos recursos necessários ao Brasil serão consumidos por funcionários públicos que se aposentam com salário integral no pico de sua produtividade.
A reforma tributária é outra questão importante que Lula tem a enfrentar, embora Cardoso tenha obtido progresso significativo na modernização da estrutura de impostos. A arrecadação tributária está em larga medida concentrada no governo federal, e os recursos são distribuídos de acordo com fórmulas estritas. A distribuição de verbas federais eleva a receita das regiões mais pobres, mas o sistema tributário é regressivo, e o Imposto de Renda responde por parcela pequena das despesas do governo. O problema é que ninguém quer pagar mais impostos, de modo que só surgem reformas quando uma crise precipita uma sensação de urgência.
O PT naturalmente espera expandir e melhorar os programas sociais necessários. Os planos do partido são sensatos e bastante semelhantes aos programas que o Brasil tem em vigor nos últimos oito anos. Isso não é mau, porque o país obteve progresso impressionante nos indicadores sociais durante o governo Cardoso. Pobreza, fome e desigualdade diminuíram. A posição brasileira no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU melhorou. As matrículas em todos os níveis de educação aumentaram, a expectativa de vida aumentou e a taxa de mortalidade por Aids caiu. Programas para proteger os indígenas e o meio ambiente amazônico foram vigorosamente expandidos.
Mas a violência vem se agravando, e a população insistirá em que essa questão tenha prioridade com relação a outros problemas sociais. As quadrilhas de traficantes estão fora de controle. O problema não se confina aos guetos. Os líderes do narcotráfico conseguiram fechar o comércio do Rio por um dia, em protesto contra o confisco de seus celulares na prisão. Os sequestros se tornaram comuns, atingindo a classe trabalhadora e a classe média. O PT dispõe de excelentes especialistas e compreende que nem todo o crime pode ser atribuído à pobreza e à desigualdade. Quer modernizar e melhorar as agências policiais. Mas a esquerda não tem idéias originais nessa área. Os policiais são extremamente mal pagos, o que torna difícil suprimir a corrupção. Uma vez mais, o progresso depende de condições financeiras que só serão atingidas com o crescimento econômico.
É fácil fazer promessas em uma campanha eleitoral, especialmente com base na suposição de que um crescimento econômico anual de 7% gerará a receita para pagar por elas. Fazer escolhas difíceis sobre prioridades, levando em conta obstáculos fiscais realistas, é muito mais difícil. Quando pressionado por detalhes específicos, nos debates de campanha, Lula costumava responder que convocaria todas as partes interessadas e conseguiria que chegassem a um acordo quanto a uma solução. Ele é um líder trabalhista que sabe conduzir negociações, e não um advogado acostumado a redigir leis, e essa mudança de estilo talvez venha a ser útil. O PT sempre enfatizou a participação ativa dos cidadãos no processo decisório. Nas cidades e Estados onde o partido governou, muitas decisões foram tomadas por meio de um "orçamento participativo" no qual cada item é discutido extensamente em reuniões públicas.
Mas as pessoas se cansam de ir a reuniões. Discussões entre facções são especialmente incômodas. Esses problemas contribuíram para a surpreendente derrota do PT em seu mais importante baluarte, o Estado do Rio Grande do Sul. A derrota nas eleições para o governo do Estado foi particularmente embaraçosa porque Porto Alegre é famosa como sede do Fórum Social Mundial, que defende idéias contrárias à globalização. A eleição estadual foi perdida devido a cisões internas no PT, ao cansaço de muitos cidadãos com reuniões intermináveis e com as poses ideológicas, e porque o Estado perdeu uma nova fábrica da Ford para a Bahia.
Os esquerdistas do PT se orgulham de ter resistido às exigências da Ford, mas a realidade é que, a despeito de sua retórica contrária à globalização, o governo do PT no Rio Grande do Sul dependia de multinacionais para alimentar o crescimento econômico do Estado. O Brasil simplesmente não pode alienar as multinacionais que estão estudando investimentos substanciais no país.
A esquerda do PT se manteve disciplinada o bastante para não atrair atenção para o contraste entre a retórica nacionalista de Lula e os compromissos econômicos que ele assumiu na campanha. Muitas questões importantes foram deixadas sem solução, com o uso de terminologia que pode ser interpretada tanto à maneira socialista quanto à maneira social-democrata. Mas tão logo a eleição foi vencida, Lula teve de começar a tomar posição sobre diversos assuntos, mais explicitamente em suas escolhas para os postos-chaves do ministério. Um dos primeiros anúncios foi a indicação de Henrique Meirelles, ex-presidente do BankBoston, para o Banco Central. Isso deixou claro que ele estava assumindo um compromisso de administração financeira responsável tal qual definida pelo FMI, Banco Mundial e outras entidades mundiais. As objeções da esquerda do PT foram ouvidas, mas rejeitadas. As demais indicações de Lula foram balanceadas e bem recebidas, com a esquerda recebendo reconhecimento em áreas como o Meio Ambiente, mas mantida longe dos postos estratégicos na economia.
Tudo que Lula fez até agora confirma sua intenção de viver com as reformas de mercado que o Brasil adotou ao longo dos últimos 15 anos. Ele construiu uma coalizão de centro-esquerda, compartilhando o poder com outros partidos. Planeja seguir o exemplo de Cardoso, mantendo o diálogo com a sociedade civil e modernizando os programas sociais, bem como recebendo de maneira favorável o investimento estrangeiro. Está até mesmo aberto a negociar um acordo de livre comércio com os EUA, política que criticou na campanha. A situação do Brasil hoje se assemelha à do Chile nos anos 80, quando uma crise fez com que muitos sentissem que o modelo "neoliberal" havia fracassado. Mas o Chile decidiu preservar seu modelo e fazê-lo funcionar. Esse exemplo não escapou à atenção de Lula.
Lula fará um governo de continuidade, com mudanças modestas e bem ponderadas. Administrará com facilidade a decepção dos esquerdistas de seu partido, alguns dos quais podem abandonar o governo e aderir a grupos mais radicais ou fundar um novo partido. A ameaça mais séria vem dos empresários tradicionais e dos servidores públicos. Eles usarão retórica nacionalista e socialista para defender a volta das políticas estatizantes e protecionistas que os beneficiavam, mas promoviam a inflação e reduziam o padrão de vida dos mais pobres. Se o país entrar em crise econômica, o que pode ocorrer por razões que estejam fora do controle de Lula, talvez seja difícil resistir às pressões.
Na oposição, o PT ajudou a manter o mito de que o "neoliberalismo" era responsável pelos problemas do país e que uma política industrial nacionalista seria preferível. Agora que está no poder, o partido precisa reconhecer que o país precisa de recursos que só podem vir da integração à economia mundial. A coisa mais importante é usar bem esses recursos, e quanto a isso o PT tem vantagens importantes. Os petistas têm um histórico notável de dedicação ao interesse nacional. Talvez sejam capazes de inspirar um novo espírito, que dê mais valor a contribuir ao país do que ao benefício próprio. Talvez alguns funcionários públicos optem voluntariamente por dar ao país o pleno benefício de sua experiência, em lugar de se aposentarem cedo. Talvez algumas mulheres se sintam eticamente obrigadas a trabalhar um número igual de anos para obter iguais benefícios. Talvez haja menos sonegação fiscal, mais disposição de aceitar normas trabalhistas flexíveis e um maior apreço pelos empresários. O mais importante desfecho da eleição de 2002 não será a mudança radical. Talvez venha a ser um novo senso de dedicação a fazer com que o sistema funcione.

TED GOERTZEL, 59, é professor de sociologia na Universidade Rutgers, em Camdem, Nova Jersey. É autor de "Fernando Henrique Cardoso e a reconstrução da democracia no Brasil" (Saraiva).
Tradução de Paulo Migliacci



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