São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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ELIO GASPARI

Fome Zero x Descaso 100

O grande inimigo do projeto Fome Zero chama-se Descaso 100. Desde que Gonçalves Dias andou pelo Nordeste numa comissão científica, nunca tantas sumidades examinaram a fome como o comboio de ministros que Lula arrastará para o semi-árido brasileiro. Na volta ao mundo onde cabeleireiros usam carro oficial, os sábios poderiam responder à seguinte pergunta:
Por que as terras situadas no perímetro dos açudes (pagos com o dinheiro da Viúva) são cedidas pelo poder público a pessoas que, em 99% dos casos, plantam capim à beira d'água?
Lula vai a Guaribas, um dos municípios mais pobres do Piauí. Se a sua comitiva tiver fôlego para mais uns 150 quilômetros, chegará à barragem Petrônio Portela. Lá, terão diante de si um caso clássico do Descaso 100. Quase todo o perímetro da barragem é ocupado por um pasto natural. Basta que se fale nesse assunto para que 11 em dez sábios expliquem a dificuldade do uso dessas terras. Provam a lógica do deserto à beira d'água. Se alguém estiver interessado em saber alguma coisa sobre a utilização dessas terras, pode aproveitar a viagem recorrendo ao secretário de Desenvolvimento Rural do governo do Piauí, Sérgio Vilela. É um pernambucano de 39 anos, com doutorado na Unicamp e 13 anos de conhecimento do sertão piauiense.
Pode-se estimar que as terras nordestinas banhadas pela orla das barragens e dos açudes somem mais de mil quilômetros de extensão.
No Ceará do ministro da Integração há o açude de Tucunduba, no município de Senador Sá. Lá fracassou uma tentativa de ocupar as margens, irrigando-as com barcos borrifadores. Valeria a pena tentar descobrir por que esse projeto deu errado, enquanto foi bem um balneário, chamado Ilha da Fantasia, numa ilhota cuja terra pertencia ao prefeito. Talvez haja tanta desigualdade no Brasil porque num município que não tem atividade econômica relevante (nem IPTU cobrava) um projeto agrícola para o andar de baixo desanda, mas um balneário para o pobre andar de cima do interior cearense consegue sobreviver por um bom tempo.
Lula devia visitar o açude baiano de Cocorobó, sob cujas águas descansam Antônio Conselheiro, seu povo e a tropa dos generais. O perímetro do açude tem uns 40 quilômetros, quase todo ocupado por capim. Essa terra é miseravelmente explorada por umas 200 pessoas. Juntando todos os rebanhos, contam-se umas 300 cabeças de bode. Não valem R$ 10 mil. Não existe o latifundiário poderoso nessa paisagem lunar. Rico, nessa terra, houve o barão de Jeremoabo, homem de 60 fazendas, um indigente se comparado ao patrimônio do banqueiro Daniel Dantas, seu bem-sucedido descendente.
A profecia do Conselheiro estava realizada em 1998. À margem do açude de Cocorobó, um pequeno pedaço do sertão virou mar, teve peixe, garças e frutas. Numa nesga de dois hectares vivia um brasileiro chamado José Bispo. Tinha 47 anos, trabalhava como diarista numa fazenda. Com o tempo de sobra e a ajuda dos filhos plantava abóbora, melão, coentro, melancia, milho e feijão. Chegou a colher 300 melões. Tudo coisa temporária. Se o açude baixa, baixa o cultivo. Se a água sobe, sobe a lavoura. Bispo tirava desse pedaço de terra o suficiente para manter uma pequena casa de alvenaria e rodar num velho Voyage.
Não faltará quem lhe diga que a roça de gente como Bispo será pouco produtiva, faltarão preços, escoamento e outros trololós.
A visita do ministério à fome deveria servir para que tão sábios senhores se convençam de que é melhor encarar os problemas de uma sociedade em que há uma família que plantou, colheu e não conseguiu bom preço do que conviver com um Brasil em que há 500 anos há famílias que simplesmente não tem onde plantar ou, quando plantam, não sabem se conseguirão colher.
Para ocupar as terras dos perímetros do açudes com famílias -ou mesmo empresas e cooperativas- dispostas a plantar, Lula precisa apenas de caneta e papel.

De primeira
José Serra embarca antes do fim do mês para os Estados Unidos. Espera apenas o nascimento de seu primeiro neto. Passará uma temporada de pelo menos três meses no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton, uma das instituições mais respeitadas da academia americana.

Nobiliarquia
Depois que Lula incorporou o apelido ao nome, fazendo-se chamar Luiz Inácio Lula da Silva, como se tivesse existido um presidente Juscelino Kubitschek JK de Oliveira, chegou-se a uma verdadeira extravagância. O Rio de Janeiro é governado pela senhora de nome Rosângela Rosinha Garotinho Barros Assed Matheus de Oliveira.
Seu marido chama-se Anthony William Matheus. Tornou-se Garotinho por apropriação do nome de guerra do locutor esportivo José Carlos Araújo.
Daqui a pouco alcançam Pedro de Alcântara João Carlos Salvador Bebiano Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Gonzaga, também conhecido como Pedro 2º, ou Pedro Banana.

Macaquice
Foram as almas de velhos metalúrgicos do ABC e de Contagem que fizeram morrer a Rolls-Royce de Lula na saída do Congresso e enguiçaram o Cadillac de Aécio Neves a caminho da Assembléia Legislativa. Eles acharam um desaforo que um metalúrgico saído dos tornos de aprendizado do Senai tomasse posse num carro estrangeiro velho e meio ridículo. Depois aborreceram-se com Aécio, sucessor de JK, usando tralha semelhante.

De manuelfiel@edu.br para Lula
Decidi te escrever depois que você falou que "companheiros e companheiras morreram neste país, lutando por conquistar a democracia e liberdade". Foi disso que eu morri, Lula. Mataram-me na manhã de 17 de janeiro de 1976, numa cela do DOI-Codi de São Paulo. Você tinha assumido a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo há uns seis meses. Eu era metalúrgico em São Paulo. Você saiu de Garanhuns em 1952. Eu saí de Quebrangulo, em Alagoas, mais ou menos nessa época. Você vendeu amendoim na rua e eu fui trocador de ônibus. Quando me prenderam, na Metal Arte, eu já trabalhava na fábrica havia 19 anos (com duas faltas ao serviço em todo esse período). Eu tinha 49 anos, mulher, duas filhas, sobradinho e carro.
A minha história você conhece. Levaram-me para o pau. Queriam que eu contasse como recebia um jornal clandestino do partidão. No meio da primeira surra eu disse a eles que iam me matar. Eles me mataram, deu um rolo danado e o presidente Ernesto Geisel demitiu o comandante do II Exército. Outro dia eu encontrei o Geisel. Ele se assustou quando eu disse que era o Manuel Fiel Filho, aquele que teria se enforcado com um par de meias. Ele me disse que demitiu o general convencido de que tinham me matado para desafiá-lo. Ferraram um alagoano como quem atira em gambá.
Teu irmão, Frei Chico, andou preso nessa mesma época. Talvez você se lembre de outros companheiros que caíram nesse arrastão: o Osvaldo Cavignato, da Volks; o Manuel Constantino (não sei se era de São Bernardo, mas era metalúrgico, como nós). Eu fui à tua posse. Andei no meio dos velhos metalúrgicos e saí chorando.
Daqui de onde a gente está, sabemos de tudo o que acontece aí, mas não podemos contar. Outro dia o Graciliano Ramos me convidou para assistir uma conversa do Antonio Palocci com o Henrique Meirelles. Ele gosta de mim porque também nasceu em Quebrangulo. Aborreceu-se e não quis me dizer o que achou do que ouviu. Você sabia que o Graciliano foi prefeito de Palmeira dos Índios e aumentou a arrecadação sem aumentar impostos nem criar taxas?
Eu estou te escrevendo para pedir um favor: faça uma lista com uns 20 nomes de velhos metalúrgicos do ABC, procure escolher alguns que nem iam ao estádio de Vila Euclides ou ao sindicato. Procure inclusive gente que não seja do PT. Convide uns quatro ou cinco de cada vez para uma conversa contigo na casa de um deles. Granja do Torto nem pensar. Ouça essa gente, Lula, porque eles, como nós, são o retrato do Brasil que se desencontrou.
Vieram para o ABC no sonho do Juscelino e construíram um grande país, com progresso e pleno emprego. Os filhos deles estudaram. Esse sonho, o sonho que nós vivemos, acabou-se, mas eles lembram de que é feito. É um povo que pode não saber muita coisa, mas sabe coisas muito importantes. Sabem, como ninguém, quando algum ministro está querendo enrolar a peãozada.

Um ministro que sabe o caminho
As empresas que vendem planos de medicina privados tiveram má sorte com a escolha de Humberto Costa para o Ministério da Saúde.
Ao tempo em que o PT se recusava a discutir a regulamentação de uma atividade que julgava perniciosa, Costa era deputado federal. Impediu que uma comandita de parlamentares ligados a empresas fizessem uma lei capaz de cobrar aos mortos para não atender aos vivos. O relator dessa reforma, para se ter uma idéia, era o notável Pinheiro Landim, que era do PMDB cearense. É dessa época a frase do deputado Ayres da Cunha, dono da empresa Blue Life: "Na minha empresa há um problema chamado idoso. (...) Se tirássemos todos os idosos do meu plano, minha rentabilidade aumentaria muito".
Se Deus é de fato petista, Costa expulsará dois vampiros do ministério. Buscará um mecanismo (pago) que cubra os aposentados. Pela situação atual, enquanto o trabalhador tem saúde, tem plano. Quando envelhece, vai para o SUS. Com outra estaca, fará funcionar o sistema de ressarcimento dos hospitais públicos que atendem clientes dos planos privados.
As empresas podem se recusar a ressarcir a Viúva quando ela atende um de seus fregueses, mas devem arcar com a publicidade sistemática, extensa e nominal dessa posição.
Uma infeliz superposição de burocratas onipotentes fazendo normas que empresários astuciosos glosam resultou numa triste realidade. Dentro de dois anos comemora-se o décimo aniversário da primeira tentativa séria do governo de cobrar o ressarcimento e até hoje cataram-se migalhas.
Parece difícil que Humberto Costa esteja disposto a pagar esse mico.

Dedo na ONU
Foi Lula quem pediu a Fernando Henrique Cardoso que mandasse o ministro Ronaldo Sardenberg para a ONU.
Se não tivesse defendido com tanta ênfase as negociações com os americanos para a Base Aérea de Alcântara, Sardenberg poderia ter sido ministro das Relações Exteriores.

Tédio popular
Além de ter lido um dos piores discursos de posse da história republicana, Lula conseguiu uma proeza. Deu a impressão de que estava entediado lendo o seu próprio texto. Seu discurso parecia-se muito mais, pela monotonia e pelo formalismo, com uma Mensagem ao Congresso. Melhor que ele só o ex-chanceler Ramiro Guerreiro. O embaixador João Augusto de Araujo Castro, uma das mentes mais ferinas que o Itamaraty produziu, garantia que Guerreiro adormecera durante um de seus próprios discursos.

Penduricalho
Nos próximos três domingos o signatário usufruirá o benefício das férias. É um instituto que se confunde com a era Vargas. Segundo o companheiro Jacques Wagner, ministro do Trabalho do atual governo, faz parte dos "penduricalhos" que deverão ser negociados (nos seus detalhes) entre empregadores e empregados.
Resta saber se algum patrão vai botar as férias dele no pano verde da negociação. Por via das dúvidas -e do verão-, o signatário pegou as suas.



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