São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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NO PLANALTO

Um passeio pelo mundo virtual dos discursos de posse

JOSIAS DE SOUZA

DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Dispostos lado a lado, os discursos de posse seriam como um grupo de japoneses: muito semelhantes. Todos os pronunciamentos inaugurais têm um olhinho puxado para o lado social.
No Brasil virtual do papel, o ser humano sempre foi uma prioridade retórica. Desde 1500. Já na carta de Caminha, marco da posse de Cabral sobre a terra de Santa Cruz, os homens _"pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas"_foram acomodados em primeiro plano.
No manuscrito que enviou à coroa portuguesa Caminha anotou: "...A terra em si é de muito bons ares. Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem. Porém, o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que será salvar essa gente".
Posta em sossego, a "gente" de então não parecia clamar por salvamento. "Eles não lavram, nem criam, nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma alimária, que costumada seja ao viver dos homens; nem comem senão desse inhame que aqui há muito e dessa semente e frutos que a terra e as árvores de si lançam." Caminha ressalvou: "E com isso andam tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto com quanto trigo e legumes comemos".
O fascínio pela mulher nativa _"...vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras..."_ gerou uma doce orgia cromossômica. Multiplicou-se a "gente". À tribo de "pardos" _"bons rostos e bons narizes, bem feitos"_ foram sendo agregados mestiços à larga. "Gente" muito escura e muito pobre.
Em 503 anos, assentou-se por detrás do Monte Pascoal uma das dez maiores economias do mundo. Monumento à prosperidade desigual. A modernidade chegou à casa-grande. A senzala só mudou de tamanho.
Hoje, divide-se ora em milhões de quartinhos de empregada de 2 m por 1,50 m, ora em exíguos barracos de favela, ora em caixas de papelão sob o viaduto. Aí se amontoa a "gente" que, sem o inhame de outrora, vive de esperança e costuma morrer muito magra.
"Gente" acorrentada à falta de oportunidade. "Gente" condenada a conviver com o fatalismo da exclusão inevitável. "Gente" vitimada pelo acidente genético de ter nascido miserável. "Gente" descartável. "Gente"-lixo.
Nacos representativos desse monturo social acorreram à Brasília da última quarta-feira. Foram testemunhar a chegada das caravelas petistas ao planalto central. Os tapuias estavam tomados de alegria. O júbilo escorreu Esplanada abaixo e inundou o espelho d’água do Congresso Nacional.
No interior do prédio, numa das cuias de Niemeyer, sob cujo teto se esconde o plenário da Câmara, Lula, qual um Caminha pós-moderno, anunciou o redescobrimento do Brasil. Proclamou o nascimento de uma nação nova.
Comparado ao discurso de posse lido por FHC em 1995, a fala de Lula tem, novamente, o característico olhinho puxado para o social. São inquietantes as semelhanças: a idêntica conclamação ao mutirão contra a fome; a imutável prioridade ao crescimento econômico; a constante promessa de geração de empregos; a mesma garantia de distribuição de renda; a invariável menção às chamadas reformas estruturais.
Lula leva uma vantagem sobre FHC. Seu estômago de retirante da seca foi apresentado pessoalmente a uma fome que os olhos do sociólogo só conheceram nas frias páginas dos livros. Mas o Brasil radicalmente outro de Lula frequenta, por ora, apenas o universo virtual de um novo discurso de posse. Mais um.
Como todo discurso de estréia, o de Lula exalou pompa. Mas nada assegura que não tropeçará em circunstâncias semelhantes às que abalroaram a nau tucana. Boas intenções, como se sabe, costumam ser desvirtuadas pelos fatos. E a meteorologia econômica prenuncia fortes tempestades.
De resto, a plutocracia, tão gostosamente incorporada à tripulação petista, continua enxergando a redenção social como mero ideal retórico. Algo a ser preservado nos limites do lírico cercadinho dos pronunciamentos de posse. Um terreno que não oferece riscos ao privilégio adquirido.
Cuidadoso, Lula empregou no discurso um vocábulo caprichosamente extraído do dicionário do antecessor: "processo". Ele disse: "...A mudança é um processo gradativo e continuado, não um simples ato de vontade, não um simples arroubo voluntarista".
Explicou que as árvores, aquelas que de si lançavam frutos à época de Caminha, precisam ser replantadas: "...Ninguém pode colher os frutos antes de plantar as árvores".
Lula está na posição inversa à de um mudo fotogênico. Os dois saem bem na foto. Mas assim como ao mudo só falta falar, a Lula falta, obviamente, fazer. Falar, já falou à farta. Está longe o dia em que aos famintos que desejarem cear bastará tocar a campainha.
Algo, contudo, já se pode prever, sem medo de errar: Lula será um grande presidente, na hipótese de que a realidade não venha a conspurcar-lhe o discurso. A "gente" parda, na fila desde as primeiras caravelas, vai finalmente melhorar de vida, desde que o seu cotidiano não piore.
Ou seja, pode-se profetizar, com razoável grau de certeza, o seguinte: é impossível fazer qualquer tipo de profecia. Melhor aguardar o próximo discurso de posse, em janeiro de 2007.



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