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São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

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ELIO GASPARI

A reestatização começará pelas ferrovias

Lula e FFHH deveriam marcar um encontro para breve. A ocasião seria a cerimônia de reestatização do trecho Campo Grande-Corumbá da ferrovia Novoeste. Será um grande dia, marco histórico da reciclagem da privataria do tucanato. A Novoeste será a primeira. Depois, virão outras estradas de ferro. Mais adiante, empresas do setor elétrico. O encontro será exemplar, porque, se ambos disserem que o outro fez bobagem, será certo que pelo menos um deles terá razão. Talvez os dois. O mico da ferrovia irá para o povo de Mato Grosso do Sul, governado por Zeca do PT.
Nada de novo sob o céu de Pindorama. Os trilhos das ferrovias nacionais contam a história de dois séculos de maracutaias. No final do século 19, o império criou um sistema de concessões que remunerava os investimentos a taxas de 5% a 7%. Havia uma ferrovia no Ceará cuja malha aumentava enquanto a carga transportada diminuía. No governo Campos Salles, as estradas foram compradas pelo governo e, em seguida, ele as arrendou. Assim foram as coisas até que Getúlio Vargas as estatizou e FFHH as privatizou. O ciclo do troca-troca, que durava algumas décadas, desta vez não completará dez anos. A história é sempre a mesma: primeiro, diz-se que o melhor a fazer é privatizar (ou estatizar). Depois, as mesmas pessoas sustentam que o melhor é estatizar (ou privatizar). À patuléia fica a tarefa de ver o seu patrimônio vendido barato, para recomprá-lo caro.
Em sete anos de arrendamento, a Novoeste não pagou suas prestações em dia, não diz quanto deve à Viúva e não cumpre as metas de produção. Recebeu 1.553 vagões em 1997 e contabilizou 850 em 2003. Mandou embora dois terços da mão-de-obra, metade dos maquinistas e manobreiros. Seus donos são gente fina: os fundos de pensão da Caixa, do Banco do Brasil, mais as casas de crédito JP Morgan e Chase, heróicas defensoras da privatização do patrimônio das Viúvas do Terceiro Mundo. A empresa diz que foi iludida pelos burocratas da privataria, pois lhe venderam uma linha que transportava combustível, e a carga cativa sumiu. Segundo a parolagem do negócio, o trecho reestatizado será conhecido como Ferrovia do Pantanal, tornando-se uma rota turística. Um grande negócio. Sendo um grande negócio, por que a concessionária privada não fica com ele?
O contrato de arrendamento da Novoeste foi arrematado em 1996 por R$ 62 milhões. Comprou-o um renomado consultor americano associado ao grupo Noel, uma casa de investimentos com negócios em transportes e na produção de barbantes e pipocas carameladas. Pouco depois, o consultor vendeu sua parte e foi em frente. Em sete anos, a ferrovia mudou de mãos várias vezes.
O mais pitoresco é que a reestatização se dá a pedido do concessionário, num Estado governado pelo PT e no mandato de um presidente petista. Como ainda não se ouviu uma só voz de empresário, banqueiro ou consultor protestando contra essa estatização, é lícito concluir que reestatizar pode ser mais uma das manhas da privataria. No governo Campos Salles, foi.

Epitácio doava aposentadoria

O embaixador Carlos Alberto Pessôa Pardellas, neto do presidente Epitácio Pessoa, esclarece o destino da aposentadoria de seu avô. A ele foi atribuída aqui a condição de patrono dos presidentes que acumulam os salários que a Viúva lhes paga aos proventos de aposentado. Nesse grupo, está Lula (R$ 6.830,42 como presidente e R$ 3.397,60 como aposentado) e esteve FFHH (R$ 6.000 como aposentado).
Epitácio efetivamente se aposentou aos 47 anos, por invalidez. Era ministro do Supremo Tribunal Federal. O embaixador informa que que seu avô tinha 25 anos de serviço público e que sua invalidez foi atestada por uma comissão de médicos na qual estava Miguel Couto, o que não é pouca coisa. Depois de aposentado, ele se submeteu a uma cirurgia e foi senador, embaixador na Conferência de Paz de Versalhes, presidente da República e membro da Corte Internacional de Haia.
É injusto colocá-lo na condição de patrono dos acumuladores. Ele explicou o porquê no seu livro "Pela Verdade":
"Durante o governo, os recursos vieram-me de três fontes: os bens que já possuía, os subsídios de presidente e os meus vencimentos de juiz aposentado. Destes últimos, nunca me servi; distribuí-os todos, como é sabido, pelos necessitados. O subsídio do presidente da República dá largamente para as suas despesas, se o presidente é homem de pouca família e costumes morigerados, pois essas despesas se reduzem à alimentação e ao vestuário. Casa, alfaias, luz, água, telefone, teatro, automóvel, choferes, jardineiros, certos criados, numerosos serviços e outras tantas despesas domésticas -nada disso onera o orçamento do presidente. Dez contos de réis mensais, portanto, são mais que suficientes."
Ao tempo de Epitácio, a Presidência da República comprava louças, panelas e copos, mas não cobria gastos como os que Lula está anunciando que vai fazer: 15 roupões de banhos "felpudos, 100% algodão egípcio, pré-penteados, pré-lavados e pré-encolhidos". Coisa para R$ 1.150. Isso e mais 2.000 latas de cerveja a um custo estimado de R$ 2.700.

Aula de política
Há duas semanas, quando Gustavo Franco foi a Brasília para depor na CPI do Banestado, o PT federal levou um susto. O ex-presidente do Banco Central contou casos em que o dinheiro de brasileiros ia para os paraísos fiscais e voltava a Pindorama como investimento estrangeiro, livrando-se de uma taxação de até 15% sobre o lucro. Entre as casas por onde passavam essas operações estava o Banco de Boston, na época presidido pelo atual governor do Banco Central, Henrique Meirelles.
Parlamentares petistas habituados a encrencar com a ekipekonômica do tucanato tiveram um calafrio. Temeram que Meirelles fosse chamado a depor na CPI. Os tucanos se dispensaram de apertar o parafuso, levando em conta o risco que isso poderia acarretar para a posição do Brasil junto aos "mercados".

Registro
A documentação oficial do FMI informa:
Em 1998, a missão do fundo que negociou o resgate da ekipekonômica tucana sugeriu que o Banco do Brasil, a Caixa Econômica e os demais bancos estatais fossem "privatizados ou fechados".

Bom conselho
Um sábio da política brasileira já fez saber ao Planalto que a reforma tributária deve ser mandada ao congelador. Vota-se a prorrogação da CPMF e se esquece o assunto.

Entrevista

Lena Lavinas
(50 anos, economista, professora da UFRJ.)

- A senhora acha que o governo federal deve unificar os seus programas sociais de combate à pobreza?
- Nós temos que buscar o máximo de rendimento para cada real aplicado nas políticas sociais. O Brasil precisa de um sistema universal de proteção social. A pobreza é uma resultante da ausência ou das inadequações dessa proteção. O que se está chamando de unificação dos programas sociais seria uma centralização de todas as ações, federais, estaduais e municipais. Isso pode misturar competências. As ações redistributivas devem ser centralizadas, como as políticas de crédito e as de transferência de renda. Essas, se você descentraliza, provoca superposições indesejáveis. Outras iniciativas devem ser locais, como programas de renda para mulheres que chefiam lares ou iniciativas de capacitação profissional -a construção de creches ou abrigos. Nesses casos, se você centraliza, desperdiça. Há muitas idéias centralizadoras que são ineficazes e estigmatizantes. Pensar em fazer um cadastro geral dos pobres, por exemplo. Um CPF da pobreza? A própria idéia das contrapartidas vai ao pobre depois que sua condição já se deteriorou e vincula a ajuda a ações do cidadão. A contrapartida condiciona o direito constitucional à assistência ao cumprimento de exigências. Temos de pensar num sistema que crie uma rede protetora capaz de reduzir as vulnerabilidades dos grupos mais carentes. A pobreza e a exclusão social são situações diferentes. Uma pessoa pode ser pobre sem ser um excluído. Lembre-se de que a maioria das famílias pobres do Brasil é constituída por trabalhadores. A exclusão é o esgarçamento das relações sociais do indivíduo na sua comunidade.

- O que a senhora acha do Fome Zero?
- Ele faz parte de uma visão emergencial da pobreza. Doações maciças de alimentos por empresas ou pessoas se justificam apenas em situações de calamidade, de desabastecimento. São três as certezas em relação à fome no Brasil: não há falta de alimentos, o que falta é renda e o que já foi feito nessa área não deu resultados. Uma pesquisa do professor Carlos Monteiro, da USP, ensina que, mesmo do ponto de vista epidemiológico, doar alimentos não é a melhor maneira de combater a desnutrição infantil. Muito mais importante para combater as causas da desnutrição, como as diarréias, é o saneamento. Ora, um dos eixos do Fome Zero continua sendo a distribuição de comida. O governo anterior distribuiu 30 milhões de cestas de alimentos. Não deixaram resultados nem lembrança. Por que repetir isso? Aquilo de que o pobre precisa é renda.

- O que a senhora propõe que se faça?
- Proponho que se abandone a tendência para regular a pobreza. Em vez de cuidar da proteção social, eu acredito que poderíamos pensar em dois tipos de programas universais. Um, vamos chamá-lo de imposto de renda negativo. Algo que já existe em toda a Europa, nos Estados Unidos e está previsto na nossa reforma tributária. Se a família não consegue uma determinada renda mínima, recebe um complemento do Estado. Outra idéia seria dar uma quantia, algo como meio salário mínimo, para as famílias de todas as crianças que estão nas escolas públicas. Veja bem: não se trata de dar dinheiro ao pobre que botou o filho na escola. Trata-se de transformar a escola pública num foco de transferência de renda. Não é contrapartida, é direito. Valoriza a escola. Como há escolas públicas com alunos da classe média, as famílias que pagam imposto de renda devolveriam o benefício. Isso é fácil de fazer, não gera burocracia e repassa renda diretamente aos cidadãos.



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