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ARTIGO
Entre São Bernardo e a avenida Paulista?
FRANCISCO DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A avaliação de determinado período histórico somente deve ser
feita pelo exame das configurações que tomam períodos que lhe
sucedem, comparando-se invariabilidades e mudanças marcantes. Ainda que os contemporâneos não possam nomear com segurança a marca dos períodos, no
calor da hora, enquanto permanecem em ação os elementos definidores, devem tentá-lo, até porque isso faz parte da política.
O que definirá, para o futuro, os
dois mandatos de FHC na Presidência e mais, desde seu exercício
como ministro da Fazenda de Itamar Franco? Terá havido uma
"era FHC", como os mais áulicos
já trombeteavam desde os dias
iniciais do primeiro mandato,
pendurados apenas no fato de
que chegava à Presidência um
cientista social prestigiado nacional e internacionalmente? A honra de sermos governados por um
Sartre, como declarou uma áulica
do primeiro momento?
Avaliações são de variada índole. A mais frequente consiste no
exame da performance econômica e das realizações materiais, o
que não deixa de ser importante e
talvez decisivo. Vista por esse ângulo, a surpresa da Presidência de
FHC é que ela é de espantosa mediocridade. A Folha publicou
nestes dias avaliações setoriais,
das quais resultou a confirmação
de que o período FHC não sobressai quando comparado a outros
períodos presidenciais. Algumas
"melhoras" são menos o resultado de incisiva ação do governo
que se finda e mais a projeção de
tendências históricas de longo
prazo. Como nos casos da saúde e
da educação, por exemplo, especificamente com a queda da mortalidade infantil e da taxa de analfabetismo. Mesmo nesses casos,
no período FHC não se acelerou a
melhoria de seus indicadores; pelo contrário, procedimentos metodológicos que medem incrementos marginais dizem que
houve desaceleração da melhoria.
Breve estudo de Reynaldo Gonçalves, professor titular de Economia Internacional da Universidade do Brasil-UFRJ, que circulou
na internet meses atrás, estabeleceu um ranking dos principais indicadores econômicos, oficiais e
usualmente utilizados, que mostrava a grande surpresa de, além
de ser medíocre, o período FHC
ter sido o pior na história republicana desde Prudente de Moraes. É
quase inacreditável!
Em indicadores como o da inflação, o governo FHC ganha de
lavada de todos os outros, empatando com o de Campos Salles,
com quem é frequentemente
comparado, sendo Pedro Malan
seu Joaquim Murtinho. Importante é ressaltar que Vargas também não se saiu nada mal no capítulo da estabilidade monetária,
mas seu período histórico é justamente reconhecido como tendo
colocado a questão social, com os
direitos trabalhistas, no centro da
nova dinâmica da economia e da
sociedade brasileiras.
Nos outros indicadores, crescimento total e per capita do PIB,
vulnerabilidade externa medida
pelo déficit da balança comercial,
vulnerabilidade financeira medida pela dívida interna sobre o PIB
e um indicador criado por Gonçalves, que ele chamou, quem sabe em irônica homenagem a FHC,
de "índice de dependência", que
mede a distância do PIB brasileiro
em relação ao dos EUA, o período
FHC perde de goleada para outros. Para Vargas, a quem FHC
queria varrer da história brasileira, e para JK, com quem queria ser
comparado no segundo mandato,
a derrota do período FHC é humilhante.
O reconhecimento futuro de
uma "era FHC" dependerá inicialmente do desempenho de seu
sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva. Mas, desde já, há que reconhecer que FHC fincou uma estaca
forte de não-retorno, que desde
logo balizará os desempenhos de
seus sucessores.
Para além do desastre econômico que está à vista de todos, que
ajudou a eleger alguém inteiramente imprevisto no esquema do
Reich de 20 anos do sinistro Sérgio Motta, o que há de não-retorno é a consolidação, visto que este
é um processo de "longue haleine", de uma sociabilidade do êxito a qualquer preço, que, nas condições de miséria, se transforma
em violência -no grosso, a falência do Estado e, a granel, as gangues e a criminalidade soltas, que
aliás são faces da mesma moeda,
são o lado perverso e sinistro da
modernidade que levou tanto
tempo para ser hegemônica no
Brasil. Uma espécie de "revolução
burguesa lúmpen". A contrapelo
da reconhecida pavonice do personagem, que gostaria de ser lembrado como o arauto de uma modernidade civilizadora.
Suas reformas -uma pirataria
semântica-, a violenta privatização de poderosos recursos estatais, que abalou as bases da propriedade burguesa e instaurou
uma nova luta no interior dos
grandes grupos econômicos, liquidando de vez o espaço privativo de empresas e grupos tradicionais e desqualificando as oposições, no que foi ajudado pela violenta erosão do emprego formal,
levou a uma implosão das regras
de relações entre classes, interesses e política.
José Serra é inegavelmente um
mau ator, mas sua derrota deveu-se em parte à indeterminação da
política que brotou dos oito anos
de FHC, que o declarado oposicionismo de Lula e dos outros
candidatos recolheu como cacos
dispersos da implosão da política.
O que explica que a porcentagem de votos do PT em 20 anos,
que ficava sempre nos 30%, tenha
saltado para o dobro no segundo
turno? Os mais otimistas dirão
que o país queria mudar. Mas em
que direção?
O não-retorno tem consequências sérias para o novo período
que se abre. Em primeiro lugar,
está o fato, visível, de que a política econômica do presidente Lula
está grandemente determinada
pela herança de FHC. Mas o mais
importante é que seus opositores
também estão imersos no mesmo
"ethos", o que dificulta enormemente a percepção de caminhos
distintos dos de FHC. Ficou evidente a enorme similitude formal
entre os programas de todos os
candidatos, incluindo-se o governista Serra.
No final, o que sobrou da indeterminação da política que resultou do turbilhão promovido por
FHC, nas vagas da globalização?
Ele descarta a permanência imediata de qualquer forma, vale dizer a coagulação de experiências a
partir das quais se projeta o futuro. Essa não-forma está presente
seja na flutuação diária do câmbio, seja na insegurança que faz o
risco-Brasil dançar uma dança de
são Guido, seja na ansiedade dos
especuladores, seja na incapacidade dos movimentos sociais fixarem uma agenda de futuro que
tenha por base o passado, mesmo
que seja o imediatamente anterior, que torna as centrais sindicais quase irrelevantes para um
programa de defesa dos direitos
do trabalho. Que faz com que
Porto Alegre esteja permanentemente a ouvir o relato dos milhares de experiências alternativas,
sem que a soma delas possa constituir-se em contra-agenda unitária e global.
A formação do governo Lula é
caracteristicamente um tatear nas
sombras da indeterminação da
política. Como comprova a formação do ministério, tenta colocar em cada pasta um representante dos variados interesses, na
ausência de uma hegemonia. Mas
quem define esses interesses?
Até onde a biografia social dos
indicados permite conclusões, os
critérios de representatividade
correm o risco de anacronismo,
pois parecem basear-se no fato de
pertencerem a setores econômicos, nas experiências anteriores
em variados lugares da chamada
sociedade civil. É um experimento novo: dificilmente se reconhece
a formação de uma hegemonia
pela agregação heterogênea de interesses, que não deve ser confundida com a agregação de interesses heterogêneos, pois estes o são
sempre como resultado da pluralidade da sociedade.
A formação da hegemonia se faz
a partir de um centro irradiador,
que atrai outras forças e as integra
ao projeto hegemônico. A formação do governo e das alianças de
FHC teve este claro sinal: apesar
de a imprensa ter proclamado
anos seguidos que ele era refém
de ACM, o que se dava era exatamente o contrário.
O eixo que surge anunciado pela formação do governo Lula é o
que sobrou da vasta indeterminação. Entre a avenida Paulista e São
Bernardo: uma política econômica ortodoxa, para não dizer tucana, e uma política social petista,
Palocci-Meirelles e Fome Zero-Ministérios Sociais. Das experiências imediatamente anteriores,
restaram a continuidade da política econômica, o que não é nada
inovador, e uma difusa definição
do social, que exclui o trabalho.
Alguém poderia pensar que finalmente emerge a social-democracia no Brasil da soma do PSDB
e do PT, uma espécie de "síntese
Felipe Gonzalez", único exemplo
na história de uma transição em
direção ao "welfare" num país da
periferia capitalista, ou da "semiperiferia", como Boaventura de
Sousa Santos qualifica o especial
estatuto da Espanha e de Portugal
no capitalismo contemporâneo.
A FHC faltava o lastro sindicalista, que, aliás, se esmerou em detonar. A Lula sobra, com folga, esse aval. Mas, até onde declarações
de formuladores da política de
Lula podem identificar um programa, o que parece é que se pretende realizar o que FHC não conseguiu: 13º salário e férias sendo
tratados como "penduricalhos"
vão na direção contrária do "welfare".
Na agenda da "transição" em
direção a um pós-neoliberalismo,
o programa para o trabalho somente comparece no registro do
neodesenvolvimentismo. E o programa para a seguridade social
permanece em brumas, mas sendo sugerida uma versão suave do
sistema de capitalização e a derrogação dos "privilégios" do funcionalismo público. Comprou-se o
discurso neoliberal ou ele já estava introjetado?
O programa que ficou conhecido como neoliberal e, entre nós,
tucano, enquanto sociabilidade,
menos que ideologia, está de corpo inteiro no par Palocci-Meirelles, e até na definição do social,
que não se apresenta como antagônico ao econômico, mas como
sua correção. E nos conselhos que
renomados articulistas vêm repetindo à exaustão: autonomia do
Banco Central, corte nas despesas
do governo, uso implacável da taxa de juros, "sensatez" na negociação da Alca, eliminação de privilégios corporativos (leia-se derrogação dos direitos constitucionais do funcionalismo público).
Pedem a Lula que ele se distinga
de FHC levando a cabo o que ele
não pôde fazer. Aliás, é notável
como figuras geralmente tidas como racionais, imparciais e não-ideológicas, acham mesmo que
FHC queria errar! Desaparece toda a objetividade e, em seu lugar,
surgem análises e avaliações de
um voluntarismo espantoso.
O governo Lula ou ultrapassa a
"era FHC" ou estará definitivamente classificado dentro dela e,
no futuro, historiadores e sociólogos reconhecerão um longo período de hegemonia neoliberal
que englobará FHC e seus sucessores por um tempo que, hoje,
ainda não é previsível.
Ultrapassar quer dizer estabelecer novas formas de propriedade
social, redistribuir renda com um
vigor e uma velocidade que não
permita ao sistema adaptar-se e
antecipar-se às transformações. A
radicalidade estará em um programa que leve ao infinito a proposta de uma renda societal, para
além das reengenharias do trabalho e do neodesenvolvimentismo,
já que o velho e bom emprego formal não voltará.
Ultrapassar quer dizer inscrever
a miséria e a desigualdade definitivamente como obstáculos intransponíveis, em vez de acidentes de uma má política econômica, que somente poderão ser resolvidas pela reestruturação do
sistema que as supere. Quaisquer
outras "políticas sociais" poderão
ser apenas funcionalizações da
pobreza.
É preciso dizer isso em alto e
bom som. Programas como o Fome Zero não têm essa qualidade.
Devem ser feitos, pois, como nos
ensinou Betinho, a fome não espera por reformas estruturais.
Mas o que alavancou decisivamente a Europa ocidental no pós-guerra foi a decidida implementação da seguridade social como
"custo" do sistema, que somente
seria ultrapassado pelo aumento
da produtividade do trabalho. O
programa Fome Zero, ao ser financiado pelo Orçamento, não se
inscreve como "custo". É um bom
começo, mas será insuficiente. Ultrapassar, por isso, significa colocar a fome como obstáculo, e não
como piedosa contrição.
Ultrapassar quer dizer cruzar o
umbral do socialismo, na edificação de uma sociabilidade anticompetitiva, de uma cultura universalizante da política. O socialismo só está escanteado do debate e da agenda quando pensado
nas velhas fórmulas da aceleração
das forças produtivas e da produção do proletariado. Mas se propõe por outros modos, que reinventam a herança clássica. O capitalismo contemporâneo, movido
a ciência e tecnologia, tem se antecipado como os melhores zagueiros do futebol. É preciso desbordá-lo nos pontos em que ele não
pode antecipar-se.
A agenda de Lula pede essa radicalidade. Que está no amplo movimento de contestação, na enorme expectativa que se formou,
mesmo na boa vontade dos que se
oferecem para colaborar. Falta
tentar dar-lhe forma, e a única
forma universal até agora conhecida é aquela que parte de políticas públicas estatais. A questão
não é a de uma abstrata condenação do estatal, tipicamente liberal,
mas de seu controle popular. Alguns que hoje aconselham Lula a
evitar toda "tentação" estatizante,
que estigmatizam logo como "populista", foram os que na ditadura
exerceram com a maior implacabilidade a coerção estatal para forçar o crescimento econômico.
"Nenhum escrúpulo, senhor
presidente", disse um deles com a
concordância de todos os presentes, frase pronunciada em célebre
e celerada reunião em que se decidiu pelo AI-5, confirmada outra
vez pelos "arquivos implacáveis"
de Elio Gaspari. E ainda se diz que
o Banco Central não faz crescimento econômico, quem o faz é o
setor privado. Dá vontade de rir,
mas o caso é de chorar!
FRANCISCO DE OLIVEIRA, 68, é professor titular aposentado do Depto. de Sociologia da FFLCH-USP e coordenador
científico do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da FFLCH-USP
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