São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Desafio para o novo presidente

LUCIANO COUTINHO

O espectro de uma guerra no Oriente Médio provocou um marcante agravamento da aversão ao risco nos mercados de capitais. Esse surto renovado de apreensão dos investidores e dos bancos tornou o crédito ainda mais escasso para empresas de segunda linha e, especialmente, para as economias emergentes deficitárias, com destaque para o caso do Brasil. Reduziram-se as expectativas quanto ao crescimento das economias norte-americana e mundial em 2003 por causa dos efeitos negativos que decorreriam de um aumento dos preços do petróleo, de quedas adicionais das Bolsas de Valores e de maior seletividade na concessão do crédito.
Para o Brasil, esse cenário piorado significa que a asfixia creditícia externa persistirá pressionando o mercado de câmbio e estreitará ainda mais o raio de manobra da política econômica nos próximos meses. Nesse contexto, é exacerbada a sensibilidade ante as expectativas negativas e isso, decerto, demandará grande cautela por parte do novo presidente.
Se eleito hoje, Luiz Inácio Lula da Silva será chamado, já amanhã, à responsabilidade de lidar com essas expectativas instáveis. É certo que Lula tem plena consciência da delicadeza da situação e -ao contrário de rumores disseminados por especuladores- irá sinalizar, com clareza, que buscará enfrentar as dificuldades de forma construtiva e estabilizadora, constituindo uma equipe econômica credível, competente e capacitada.
Há, desde logo, uma perfeita compreensão, por parte de Lula e do Partido dos Trabalhadores, quanto à crucialidade dos desafios na área fiscal. Na "Carta aos Brasileiros", firmou-se o compromisso de que a trajetória da dívida pública será posta sob controle e de que o superávit fiscal primário será obtido na escala necessária. Medidas complementares precisarão ser votadas ainda neste ano para assegurar as metas fiscais. Há clara percepção da urgência dessas providências. Ademais, será possível recriar o espaço para a queda da taxa de juros, uma vez que é perfeitamente factível equacionar as contas externas em 2003. Reduções da taxa de juros obviamente diminuirão a pressão sobre a dívida interna.
Carecem de fundamento os prognósticos (desinformados ou dolosos) de que o Brasil está condenado a desembocar na insolvência externa. Se não vejamos. É perfeitamente viável obter, já em 2003, superávit comercial de pelo menos US$ 15,5 bilhões (pode ser até maior, como resultado de políticas mais incisivas de apoio à exportação e à substituição de importações). Se isso ocorrer, o déficit em conta corrente cairá para algo próximo a US$ 9,5 bilhões no ano que vem, cifra que pode ser financiada sem maior dificuldade pelo ingresso de investimentos diretos (ainda que se suponha que estes fiquem bem abaixo da projeção do Banco Central, de US$ 16 bilhões em 2003). Resta assegurar a rolagem de dívidas, bônus e outros passivos cujo montante está estimado em US$ 28 bilhões. Desse total devem ser excluídos os créditos oficiais e de fornecedores, pois não há razão para que não sejam refinanciados. Ainda que a rolagem do saldo restante seja parcial, os recursos do programa com o FMI serão suficientes para fechar as contas externas em 2003. São contas apertadas, mas factíveis -e não há razão para pânico irracional.
Muito ao contrário, a economia brasileira tem, felizmente, capacidade de escape graças à possibilidade de aumentar e de sustentar o superávit comercial. Mas a obtenção desses resultados no futuro -que serão cruciais para assegurar a solvência- demandará uma grande e persistente mobilização do setor privado e requererá investimentos substanciais para exportar e substituir importações. Uma taxa de câmbio estimulante (que deve ser preservada sem que se abra mão do regime de flutuação suja) não é suficiente per se. Uma política industrial e de comércio exterior será imprescindível para robustecer e manter o saldo comercial num contexto de retomada do crescimento da economia. Na hora em que os mercados compreenderem que o novo governo empreenderá com coerência e determinação uma política de redução duradoura da vulnerabilidade externa, ocorrerá uma completa reviravolta nesse estado de rejeição ao Brasil.
Na hipótese de a conjuntura internacional não se deteriorar, as coisas ficarão mais fáceis. Mas o novo presidente não deve contar com isso. A posição passiva -marca do governo FHC- já nos custou muito caro. Doravante, é preciso trabalhar com senso de urgência e com sentimento de responsabilidade, uma vez que só o nosso próprio esforço -de gerar saldos em dólares como resultado de nosso desempenho competitivo- poderá arrancar o Brasil do risco e pavimentar o caminho para o crescimento sustentado.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).

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