São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

O dia depois da festa

RUBENS RICUPERO

Em 1819 , Leopardi escrevia "La sera del dì di festa", em tradução literal "O entardecer do dia de festa". Naquele tempo, as festas campestres coincidiam com as festividades religiosas. Ao cair da noite, estava tudo terminado.
O primeiro verso evoca a suavidade e quietude da noite: "Dolce e chiara è la notte e senza vento". A serenidade da lua, o silêncio do repouso contrastam com a agitação e a fugacidade da festa, de que nada ficou a não ser o canto solitário do artesão que tarde se recolhe à pobre choupana. A noite profunda é indiferente ao desespero do jovem poeta, que sente a dor apertar-lhe o peito "ao pensar como tudo no mundo passa e quase não deixa traço". A exaltação dá lugar à monotonia, a rotina afoga a celebração: "Eis que foge rápido o dia festivo, e, ao festivo, o dia comum sucede, carregando o tempo todo humano acidente".
Não sei se o estoicismo desiludido de Leopardi casa bem com uma jornada festiva por excelência, como é a das eleições. Virou lugar-comum dizer que cada etapa de uma campanha eleitoral é indispensável para compor o ritual regular de renovação da esperança. Recordo como assisti emocionado à multidão celebrando no teto do Congresso a escolha de Tancredo em 1984. De repente, desaba um daqueles temporais sem aviso de Brasília e centenas de braços se erguem para sustentar gigantesca bandeira auriverde, que maternalmente abrigou a todos qual imensa e acolhedora tenda. Para quem viu, será para sempre o símbolo de beleza e emoção do fim de 20 anos de regime militar.
Inesquecível, mas, na manhã seguinte, o cotidiano retomou suas exigências cinzentas e tivemos todos de bater o ponto na repartição ou na fábrica. Começou então a interminável espera pela posse que nunca houve, entrecortada pelos sobressaltos e rumores sobre as surpresas sinistras que estariam sendo tramadas pelos generais nos porões do SNI. Participei do périplo pelo exterior com o qual Tancredo tentou exorcizar esses demônios e às vezes me pergunto se ele não teria podido curar-se em tempo caso tivesse logo afastado com a posse os temores que por tantos meses o paralisaram.
Lembro que, ao planejarmos a viagem, vinha-nos constantemente à memória uma outra excursão anterior, concebida e cumprida debaixo das mesmas apreensões, a de Juscelino. Eleito em 3 de outubro de 1955, JK teve de esperar até 31 de janeiro do ano seguinte. Entre uma e outra data, o artigo categórico de Lacerda na "Tribuna da Imprensa": "Esses homens não podem tomar posse, não devem tomar posse nem tomarão posse" (9/11/55). Meses antes, a agitação já começara com o memorial dos chefes militares exigindo "um movimento altruístico de recomposição patriótica". Kubitschek resistiu com seu célebre discurso: "Deus poupou-me o sentimento do medo. A duração da minha candidatura está condicionada à duração da própria democracia em nossa pátria". Acabou salvo não pelo "movimento altruístico", mas por outro eufemismo de que é fértil a imaginação brasileira, o "Movimento de Retorno aos Quadros Constitucionais Vigentes", ou, trocado em miúdos, o golpe preventivo do marechal Lott em 11 de novembro de 1955.
Os leitores que conseguiram acompanhar-me até aqui estarão talvez intrigados com o que pretendo insinuar ao evocar tantas velharias de um passado que, apesar dos encantos da bossa nova, felizmente ficou para trás. Ignoro, é claro, se este domingo será decisivo, se haverá novo turno, quem ganhará e quando terá início a espera da posse. Quase tudo hoje mudou, menos duas coisas. A transição continua longa demais e as ameaças e turbulências alimentadas por esse dilatado período possuem o mesmo poder desestabilizador de antigamente. A única diferença é que agora devemos temer não o golpe dos generais, mas o dos "mercados", quem sabe até mais perigosos pela sua anonimidade.
Faço votos para que tenham razão os confiantes em rápida volta à normalidade tão logo conhecidos os nomes dos ministros econômicos ou, melhor ainda, evitando-se anúncios precipitados, substituídos com vantagem por declarações e conversas sensatas e tranquilizadoras. Desejo-o sinceramente, mas minha experiência de brasileiro que passou por muitas vicissitudes me faz temer que os golpistas não desistem facilmente e, eliminado um pretexto, não tardam em encontrar outro. Se isso ocorrer, só existe uma saída. Não obviamente abreviar a transição, como foi obrigado a fazer Alfonsín na Argentina, pois não chegamos a esse ponto. A solução será uma transição modelar, não apenas no sentido do acesso às informações, mas na disposição do atual governo de, se preciso, assumir o ônus das medidas preventivas necessárias para evitar o pior. Pondo de lado a teimosia ideológica, a confiança obstinada nos mercados, uma espécie de patético amor de mulher de malandro que esses mercados se esmeraram em trair e frustrar, culminando com o golpe de misericórdia de Stanley Fischer, mentor e interlocutor frequente de nossos dirigentes, que acaba de refutar publicamente seus ex-discípulos ao sugerir -e esperamos que o ex-diretor do FMI e hoje vice-presidente do Citicorp tenha se equivocado nesse ponto- que a dívida brasileira é insustentável.
Para não terminar o comentário com essa nota amarga, insisto em que o dever do governo é facilitar a seu sucessor, seja qual for, seguir caminho diferente do seu. No livro "Race Matters", de um dos grandes intelectuais negros americanos, Cornell West, encontrei iluminadora definição do niilismo que destrói os jovens negros nos EUA e se aplica como luva à nossa "Cidade de Deus", símbolo apavorante da ameaça que se abate neste momento sobre o Rio e o Brasil em geral. O niilismo, diz ele, é a experiência vivida de ter de lidar com a existência de terrível falta de sentido, de esperança e, sobretudo, de amor. O resultado é a alienação entorpecedora em relação aos demais, a disposição autodestrutiva em relação ao mundo, uma atitude impiedosa e perversa, que destrói o indivíduo e os outros. Nenhum governo pode trazer-nos amor e sentido, mas o mínimo que temos o direito de exigir do que vamos eleger é que nos dê razões para ter esperança.


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

E-mail -
rubensricupero@hotmail.com


Texto Anterior: Tendências internacionais: Unilateralismo dos EUA compromete seu poder global
Próximo Texto: Lições contemporâneas - Luciano Coutinho: Desafio para o novo presidente
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.