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OPINIÃO ECONÔMICA
O dia depois da festa
RUBENS RICUPERO
Em 1819 , Leopardi escrevia
"La sera del dì di festa", em
tradução literal "O entardecer do
dia de festa". Naquele tempo, as
festas campestres coincidiam com
as festividades religiosas. Ao cair
da noite, estava tudo terminado.
O primeiro verso evoca a suavidade e quietude da noite: "Dolce e
chiara è la notte e senza vento". A
serenidade da lua, o silêncio do
repouso contrastam com a agitação e a fugacidade da festa, de
que nada ficou a não ser o canto
solitário do artesão que tarde se
recolhe à pobre choupana. A noite profunda é indiferente ao desespero do jovem poeta, que sente
a dor apertar-lhe o peito "ao pensar como tudo no mundo passa e
quase não deixa traço". A exaltação dá lugar à monotonia, a rotina afoga a celebração: "Eis que
foge rápido o dia festivo, e, ao festivo, o dia comum sucede, carregando o tempo todo humano acidente".
Não sei se o estoicismo desiludido de Leopardi casa bem com
uma jornada festiva por excelência, como é a das eleições. Virou
lugar-comum dizer que cada etapa de uma campanha eleitoral é
indispensável para compor o ritual regular de renovação da esperança. Recordo como assisti
emocionado à multidão celebrando no teto do Congresso a escolha de Tancredo em 1984. De
repente, desaba um daqueles
temporais sem aviso de Brasília e
centenas de braços se erguem para sustentar gigantesca bandeira
auriverde, que maternalmente
abrigou a todos qual imensa e
acolhedora tenda. Para quem
viu, será para sempre o símbolo
de beleza e emoção do fim de 20
anos de regime militar.
Inesquecível, mas, na manhã
seguinte, o cotidiano retomou
suas exigências cinzentas e tivemos todos de bater o ponto na repartição ou na fábrica. Começou
então a interminável espera pela
posse que nunca houve, entrecortada pelos sobressaltos e rumores
sobre as surpresas sinistras que
estariam sendo tramadas pelos
generais nos porões do SNI. Participei do périplo pelo exterior com
o qual Tancredo tentou exorcizar
esses demônios e às vezes me pergunto se ele não teria podido curar-se em tempo caso tivesse logo
afastado com a posse os temores
que por tantos meses o paralisaram.
Lembro que, ao planejarmos a
viagem, vinha-nos constantemente à memória uma outra excursão anterior, concebida e cumprida debaixo das mesmas
apreensões, a de Juscelino. Eleito
em 3 de outubro de 1955, JK teve
de esperar até 31 de janeiro do
ano seguinte. Entre uma e outra
data, o artigo categórico de Lacerda na "Tribuna da Imprensa":
"Esses homens não podem tomar
posse, não devem tomar posse
nem tomarão posse" (9/11/55).
Meses antes, a agitação já começara com o memorial dos chefes
militares exigindo "um movimento altruístico de recomposição patriótica". Kubitschek resistiu com seu célebre discurso:
"Deus poupou-me o sentimento
do medo. A duração da minha
candidatura está condicionada à
duração da própria democracia
em nossa pátria". Acabou salvo
não pelo "movimento altruístico", mas por outro eufemismo de
que é fértil a imaginação brasileira, o "Movimento de Retorno aos
Quadros Constitucionais Vigentes", ou, trocado em miúdos, o
golpe preventivo do marechal
Lott em 11 de novembro de 1955.
Os leitores que conseguiram
acompanhar-me até aqui estarão
talvez intrigados com o que pretendo insinuar ao evocar tantas
velharias de um passado que,
apesar dos encantos da bossa nova, felizmente ficou para trás. Ignoro, é claro, se este domingo será
decisivo, se haverá novo turno,
quem ganhará e quando terá início a espera da posse. Quase tudo
hoje mudou, menos duas coisas.
A transição continua longa demais e as ameaças e turbulências
alimentadas por esse dilatado período possuem o mesmo poder desestabilizador de antigamente. A
única diferença é que agora devemos temer não o golpe dos generais, mas o dos "mercados", quem
sabe até mais perigosos pela sua
anonimidade.
Faço votos para que tenham razão os confiantes em rápida volta
à normalidade tão logo conhecidos os nomes dos ministros econômicos ou, melhor ainda, evitando-se anúncios precipitados,
substituídos com vantagem por
declarações e conversas sensatas e
tranquilizadoras. Desejo-o sinceramente, mas minha experiência
de brasileiro que passou por muitas vicissitudes me faz temer que
os golpistas não desistem facilmente e, eliminado um pretexto,
não tardam em encontrar outro.
Se isso ocorrer, só existe uma saída. Não obviamente abreviar a
transição, como foi obrigado a fazer Alfonsín na Argentina, pois
não chegamos a esse ponto. A solução será uma transição modelar, não apenas no sentido do
acesso às informações, mas na
disposição do atual governo de, se
preciso, assumir o ônus das medidas preventivas necessárias para
evitar o pior. Pondo de lado a teimosia ideológica, a confiança
obstinada nos mercados, uma espécie de patético amor de mulher
de malandro que esses mercados
se esmeraram em trair e frustrar,
culminando com o golpe de misericórdia de Stanley Fischer, mentor e interlocutor frequente de
nossos dirigentes, que acaba de
refutar publicamente seus ex-discípulos ao sugerir -e esperamos
que o ex-diretor do FMI e hoje vice-presidente do Citicorp tenha se
equivocado nesse ponto- que a
dívida brasileira é insustentável.
Para não terminar o comentário com essa nota amarga, insisto
em que o dever do governo é facilitar a seu sucessor, seja qual for,
seguir caminho diferente do seu.
No livro "Race Matters", de um
dos grandes intelectuais negros
americanos, Cornell West, encontrei iluminadora definição do niilismo que destrói os jovens negros
nos EUA e se aplica como luva à
nossa "Cidade de Deus", símbolo
apavorante da ameaça que se
abate neste momento sobre o Rio
e o Brasil em geral. O niilismo, diz
ele, é a experiência vivida de ter
de lidar com a existência de terrível falta de sentido, de esperança
e, sobretudo, de amor. O resultado é a alienação entorpecedora
em relação aos demais, a disposição autodestrutiva em relação ao
mundo, uma atitude impiedosa e
perversa, que destrói o indivíduo
e os outros. Nenhum governo pode trazer-nos amor e sentido, mas
o mínimo que temos o direito de
exigir do que vamos eleger é que
nos dê razões para ter esperança.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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