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São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Poder nacional e globalização: ideologia x fatos

LUCIANO COUTINHO

A visão neoliberal hiperglobalista, que ganhou notoriedade no início dos anos 90, postulava que a prevalência dos mercados e empresas transnacionais tornaria irrelevante o Estado nacional. De outro lado, pensadores institucionalistas sublinharam que, consideradas as especificidades socioculturais e a densidade das construções institucionais, o Estado e o espaço nacional não podem ser "diluídos". Assim, no outro extremo, postulou-se um nacionalismo metodológico.
Sem negar que o conjunto de características essenciais das sociedades modernas -autoridade, identidade, cultura, territorialidade, segurança e ordem legal- seja produto da história da formação dos Estados nacionais e, portanto, reconhecendo a densidade e a irredutibilidade institucional destes, é imperioso, por outro lado, registrar que a acumulação de capital nunca esteve historicamente adstrita aos espaços nacionais. Ao longo de pelo menos seis séculos -desde o desenvolvimento do mercantilismo até o estágio atual de globalização dos mercados de capitais-, os Estados nacionais se defrontaram com um sistema mundial (hegemonicamente organizado ou não) de relações comerciais, de moedas fortes e de hierarquias geoterritoriais de poder militar. A grande transformação burguesa engendrada pela ascensão do capitalismo, magistralmente descrita por Karl Polanyi, é que estruturou definitivamente a arquitetura mundial dos mercados (de capitais e de bens), sendo essa arquitetura fundada na institucionalização dos direitos de propriedade no âmbito dos Estados nacionais. A vigência dos mercados mundiais, portanto, está assegurada pela inscrição e pelo reconhecimento no plano nacional dos direitos capitalistas, ainda que esteja revestida de formas legal-institucionais específicas. O recurso a esse "détour" histórico foi para mostrar que sistema mundial e Estados nacionais são construções indissociáveis, e não instâncias essencialmente antagônicas.
Dessa constatação, obviamente, não se conclui que seja uniforme e homogêneo o conteúdo institucional e o poder relativo dos Estados nacionais -seja no âmbito mundial, seja no plano da sua autoridade territorial. Os Estados nacionais são heterogêneos e distintos. Correspondem a configurações sociais, estruturas empresariais, sistemas industrial-tecnológicos, bases de recursos naturais, geografia, poder militar e grau de centralização específicos. Um atributo diferenciador muito relevante diz respeito à capacidade de emissão de moeda internacionalmente conversível ou não: os Estados economicamente hegemônicos em um espaço relevante podem dispor de moedas internacionalmente aceitas, os periféricos não. Esse é um critério indiscutível de hierarquização da autonomia relativa dos Estados nacionais.
O intenso processo de expansão e de integração do mercado mundial de capitais nos anos 80 e 90, associado à aceleração dos investimentos diretos (predominantemente de aquisições e de fusões), e ainda a proliferação de novos atores transnacionais (ONGs) e de processos globalizantes (internet, foros extraterritoriais) vêm efetivamente constrangendo a exclusividade e a competência da autoridade dos Estados nacionais. Diante da força desse processo, e considerando que os Estados têm de lidar com a intersecção do arcabouço legal-institucional nacional com o funcionamento dos mercados mundiais, é fácil compreender como, nos últimos anos, essa função vem sendo sobrecarregada e transformada. A disseminação dos tratados homogeneizadores dos direitos dos investidores (Trips, Trims, Miga, resoluções da OMC etc.) tem acarretado a desnacionalização de vários componentes da institucionalidade legal dos Estados nacionais, reduzindo-lhes o raio de manobra para operar políticas de regulação e de tributação nos campos afetados.
De outro lado, porém, a maior parte do aparato institucional dos Estados nacionais não foi ainda afetada por essa onda homogeneizadora, preservando-se uma ampla reserva de poder exclusivo nos espaços territoriais. Mas, para contra-arrestar a força constrangedora dos mercados internacionais e das regras globalizantes, os Estados nacionais que aspiram a empreender projetos próprios de desenvolvimento precisam reforçar as suas condições objetivas de independência ante esses mercados. A robustez do balanço de transações com o exterior e o volume de reservas de divisas tornaram-se medidas objetivas de autonomia.
Exemplo didático: a Rússia, que, em 1998, decretou uma moratória traumatizadora para os investidores locais e estrangeiros e que, até o presente, convive com um regime discricionário e politizado vis-à-vis os direitos de propriedade, desfruta de uma taxa de risco-país muito baixa (entre 250 e 300 pontos-base), pois conta com um forte superávit em conta corrente (média de US$ 33 bilhões entre 1999 e 2002) e com reservas que, neste ano, devem fechar perto de US$ 66 bilhões. A taxa média de crescimento do PIB foi de 6% ao ano (1999-2002). Poderia citar também o exemplo da China, cuja robustez cambial lhe permitiu crescer a uma taxa de 7,6% no mesmo período.
Ao Brasil, com a inflação dominada e com um regime fiscal fortalecido, só falta sintonizar a regulação das infra-estruturas, solidificar o balanço de pagamentos e ampliar o volume de reservas próprias para poder retomar um ritmo de crescimento sustentado correspondente ao seu potencial.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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