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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Poder nacional e globalização: ideologia x fatos
LUCIANO COUTINHO
A visão neoliberal hiperglobalista, que ganhou notoriedade no início dos anos 90, postulava que a prevalência dos mercados e empresas transnacionais
tornaria irrelevante o Estado nacional. De outro lado, pensadores
institucionalistas sublinharam
que, consideradas as especificidades socioculturais e a densidade
das construções institucionais, o
Estado e o espaço nacional não
podem ser "diluídos". Assim, no
outro extremo, postulou-se um
nacionalismo metodológico.
Sem negar que o conjunto de
características essenciais das sociedades modernas -autoridade, identidade, cultura, territorialidade, segurança e ordem legal- seja produto da história da
formação dos Estados nacionais
e, portanto, reconhecendo a densidade e a irredutibilidade institucional destes, é imperioso, por
outro lado, registrar que a acumulação de capital nunca esteve
historicamente adstrita aos espaços nacionais. Ao longo de pelo
menos seis séculos -desde o desenvolvimento do mercantilismo
até o estágio atual de globalização dos mercados de capitais-,
os Estados nacionais se defrontaram com um sistema mundial
(hegemonicamente organizado
ou não) de relações comerciais, de
moedas fortes e de hierarquias
geoterritoriais de poder militar. A
grande transformação burguesa
engendrada pela ascensão do capitalismo, magistralmente descrita por Karl Polanyi, é que estruturou definitivamente a arquitetura mundial dos mercados (de capitais e de bens), sendo essa arquitetura fundada na institucionalização dos direitos de propriedade no âmbito dos Estados nacionais. A vigência dos mercados
mundiais, portanto, está assegurada pela inscrição e pelo reconhecimento no plano nacional
dos direitos capitalistas, ainda
que esteja revestida de formas legal-institucionais específicas. O
recurso a esse "détour" histórico
foi para mostrar que sistema
mundial e Estados nacionais são
construções indissociáveis, e não
instâncias essencialmente antagônicas.
Dessa constatação, obviamente,
não se conclui que seja uniforme e
homogêneo o conteúdo institucional e o poder relativo dos Estados nacionais -seja no âmbito
mundial, seja no plano da sua autoridade territorial. Os Estados
nacionais são heterogêneos e distintos. Correspondem a configurações sociais, estruturas empresariais, sistemas industrial-tecnológicos, bases de recursos naturais, geografia, poder militar e
grau de centralização específicos.
Um atributo diferenciador muito
relevante diz respeito à capacidade de emissão de moeda internacionalmente conversível ou não:
os Estados economicamente hegemônicos em um espaço relevante
podem dispor de moedas internacionalmente aceitas, os periféricos
não. Esse é um critério indiscutível de hierarquização da autonomia relativa dos Estados nacionais.
O intenso processo de expansão
e de integração do mercado mundial de capitais nos anos 80 e 90,
associado à aceleração dos investimentos diretos (predominantemente de aquisições e de fusões), e
ainda a proliferação de novos
atores transnacionais (ONGs) e
de processos globalizantes (internet, foros extraterritoriais) vêm
efetivamente constrangendo a exclusividade e a competência da
autoridade dos Estados nacionais. Diante da força desse processo, e considerando que os Estados têm de lidar com a intersecção do arcabouço legal-institucional nacional com o funcionamento dos mercados mundiais, é fácil
compreender como, nos últimos
anos, essa função vem sendo sobrecarregada e transformada. A
disseminação dos tratados homogeneizadores dos direitos dos investidores (Trips, Trims, Miga, resoluções da OMC etc.) tem acarretado a desnacionalização de
vários componentes da institucionalidade legal dos Estados nacionais, reduzindo-lhes o raio de
manobra para operar políticas de
regulação e de tributação nos
campos afetados.
De outro lado, porém, a maior
parte do aparato institucional
dos Estados nacionais não foi
ainda afetada por essa onda homogeneizadora, preservando-se
uma ampla reserva de poder exclusivo nos espaços territoriais.
Mas, para contra-arrestar a força
constrangedora dos mercados internacionais e das regras globalizantes, os Estados nacionais que
aspiram a empreender projetos
próprios de desenvolvimento precisam reforçar as suas condições
objetivas de independência ante
esses mercados. A robustez do balanço de transações com o exterior e o volume de reservas de divisas tornaram-se medidas objetivas de autonomia.
Exemplo didático: a Rússia,
que, em 1998, decretou uma moratória traumatizadora para os
investidores locais e estrangeiros e
que, até o presente, convive com
um regime discricionário e politizado vis-à-vis os direitos de propriedade, desfruta de uma taxa
de risco-país muito baixa (entre
250 e 300 pontos-base), pois conta
com um forte superávit em conta
corrente (média de US$ 33 bilhões
entre 1999 e 2002) e com reservas
que, neste ano, devem fechar perto de US$ 66 bilhões. A taxa média de crescimento do PIB foi de
6% ao ano (1999-2002). Poderia
citar também o exemplo da China, cuja robustez cambial lhe permitiu crescer a uma taxa de 7,6%
no mesmo período.
Ao Brasil, com a inflação dominada e com um regime fiscal fortalecido, só falta sintonizar a regulação das infra-estruturas, solidificar o balanço de pagamentos
e ampliar o volume de reservas
próprias para poder retomar um
ritmo de crescimento sustentado
correspondente ao seu potencial.
Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e
Tecnologia (1985-88).
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