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São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

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LUÍS NASSIF

O violão brasileiro

Quem representa a "alma brasileira", essa mistura de simplicidade e nostalgia, de talento e lirismo? Os meninos da Mangueira sambando, os do Pelourinho batucando, um choro do Pixinguinha, uma ginga de Mané, Didi no gol da Suécia, a "chaleira" de Pelé, os versos de Castro Alves, acordes de Tom Jobim, os tabuleiros da baiana, os profetas de Congonhas, os maracatus de Recife, o coco do Maranhão?
Para mim, a "alma brasileira" foi construída pelas mãos de pedreiro de um filho de índia e de português nascido em Jatobá (PE) em 1883 e morto em 1947 no Rio de Janeiro, de nome João Teixeira Guimarães, alcunha João Pernambuco.
Criança, os "Sons de Carrilhões" tocado pelo tio Léo entravam pelos ouvidos, invadiam o peito de um jeito que, quanto mais vivo, mais me emociona.
Já falei do meu tio carioca que, na juventude, foi colega de Dilermando Reis e aluno de Levino Conceição. Tio Léo contava do conservatório no centro do Rio, não me lembro se na rua do Catete, em que lecionavam o cego Levino e João Pernambuco.
Da rua do Catete o som de Pernambuco conquistou o mundo. Foi numa praça de Buenos Aires, morto de saudades do Brasil, que ouvi o velho professor argentino tocando "Sons de Carrilhões" e, depois, o "Jongo", "Graúna", "Interrogando" e o que mais se pedissem do mestre.
A importância de João Pernambuco para a música brasileira é do nível da de Villa-Lobos, Pixinguinha e Tom Jobim. Era analfabeto das letras e das músicas, compunha de ouvido. Parte de sua obra foi preservada graças a um maestro mineiro que conheci ainda em vida, em Belo Horizonte, e do qual não me recordo o nome. João Pernambuco ficava trancado em um quarto, com medo que roubassem suas músicas, como tantas vezes fizeram, me disse ele. Tocava, o maestro ouvia do lado de fora e escrevia as partituras.
Órfão de pais, João Pernambuco passou pelo Recife, aprendeu o ofício de ferreiro antes de descer para o Rio de Janeiro, onde chegou com 20 anos. Nos anos 10 montou o conjunto "Trupe Sertaneja" e, depois, constituiu o histórico Turunas da Mauricéia, que tinha o violão de sotaque flamengo de Meira, o bandolim de Luperce Miranda e o crooner Augusto Calheiros.
A música brasileira começou a ser moldada por seu som, pelo regionalismo pernambucano que influenciou de Noel a Sinhô, principalmente a partir da gravação de "Cabocla de Caxangá", que inaugura o ciclo da música nordestina no Rio de Janeiro.
O repertório de Pernambuco é imenso, mas sua música mais conhecida, das mais conhecidas músicas brasileiras do século 20, o "Engenho de Humaitá", depois rebatizada de "Luar do Sertão", de 1911, não está registrada em seu nome, mas no do parceiro Catulo da Paixão Cearense.
Esse episódio motivou uma discussão que atravessou décadas. No seu depoimento ao MIS (Museu de Imagem e Som), Pixinguinha informa ter ouvido o "Luar do Sertão" tocado por João Pernambuco, antes de receber letra de Catulo.
A chegada de João Pernambuco ao Rio coincidiu com o início da indústria fonográfica e com a própria formação do violão brasileiro. João Pernambuco desenvolvia um estilo de choro diferenciado, ao lado do niteroiense Levino, de Villa-Lobos, do paraguaio Agustín Barrios e de Quincas Laranjeiras. Aliás, quem quiser ver uma foto histórica da época acesse o endereço www2.correioweb.com.br/cw/2000-11-07/mat-15876.htm.
A escola de violão de João Pernambuco não teve paralelo no violão brasileiro do século. Por meio de seu companheiro de aventura musical, Meira, seu estilo conseguiu seguidores como Dilermando Reis, Canhoto da Paraíba, o próprio Baden Powell.
Aparentemente, é um veio inesgotável. Alguns anos atrás, Alaíde Costa gravou "Estrada do Sertão", valsa inspiradíssima de Pernambuco que recebeu letra clássica de Hermínio Bello de Carvalho.
Recentemente um jornal de Pernambuco fez uma eleição para saber do pernambucano mais ilustre do século. Concorreram Gilberto Freyre e Luiz Gonzaga. Faltou o violão de João Pernambuco.


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