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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Globalização e império
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
As únicas potências capazes
de manter o centro político
do sistema capitalista mundial e
de expandir o seu capital sem limites territoriais a todos os continentes foram as anglo-saxônicas:
a Inglaterra, do século 19 até a
guerra de 1914, e os EUA, depois
da Segunda Guerra. Partiram de
economias e de Estados nacionais
poderosos que não apenas derrotaram os seus adversários mas lograram a união do poder político-militar com o capital financeiro, o
que lhes garantiu uma hegemonia global antes inexistente. Tiveram como instrumento principal
de seu poder mundial, além das
armas, a emissão de moeda internacional dominante que lhes permitiu financiar simultaneamente
a dívida pública interna e a expansão para fora. As potências
hegemônicas sempre puderam
"resolver" os seus problemas do
balanço de pagamentos pelos circuitos do capital financeiro internacional, embora esse movimento provocasse periodicamente especulações desenfreadas e crises
nas duas principais praças financeiras do mundo, a City, de Londres, e Wall Street.
O deslocamento do poder mundial produziu modificações profundas na geoeconomia do sistema capitalista. O desenvolvimento capitalista nos vários continentes foi retardado ou facilitado pela geopolítica dos dois centros imperiais. São exemplos clássicos a
destruição da indústria manufatureira da Índia no século 19, promovida pelo império britânico, e
o "desenvolvimento a convite" do
leste asiático ao abrigo da expansão militar do império americano. As guerras interimperialistas
foram determinantes periódicas
no bloqueio do comércio internacional. Afetaram de forma desigual o desenvolvimento das forças produtivas internas tanto de
grandes potências no último
quartel do século 19 quanto de algumas nações periféricas no século 20.
As tendências e os limites da expansão do capital e dos impérios
modernos não são da mesma natureza. A expansão do capital
tem sua expressão mais geral na
apropriação privada da riqueza e
na vocação compulsiva para a
acumulação sem limites, que se
expressa na sua forma mais geral,
o dinheiro, que é o deus do mercado. A expansão do capital não se
processa, porém, sob a forma de
crescimento contínuo. Tem ciclos
endógenos de acumulação, de incorporação de progresso técnico,
de valorização e de desvalorização do capital financeiro. A incorporação crescente de novos mercados, de novos consumidores e
de novos trabalhadores a taxas de
exploração variável e a própria
concorrência são forças propulsoras imanentes da expansão do capital. Suas contradições internas
levam concretamente a recessões
e crises que podem dar lugar a
deslocamentos econômicos, sociais e políticos, mas raramente
produzem por si sós "crises sistêmicas". Já a expansão do poder
dos Estados nacionais com vocação imperial quase sempre se expressa em guerras mundiais com
poderosos efeitos de ruptura sistêmica. A acumulação de poder das
grandes potências pode ser igualmente compulsiva, mas a rivalidade imperialista não se processa
da mesma forma que a concorrência capitalista. Os limites à expansão imperialista e à concentração de poder são sempre "externos" já que nenhuma potência
capitalista foi derrubada ou barrada sem que outra a detivesse
pelo poder das armas, em geral
em aliança com outras potências
rivais.
A ligação entre a expansão geográfica do capitalismo e a expansão dos impérios -decisiva para
a história do sistema- não é dedutível do movimento imanente
do capital, que tenderia a um capitalismo global unificado e centralizado, nem de uma teoria geopolítica abstrata que tenderia a
um "império único". A concorrência dos capitais e a rivalidade
entre potências dão ao sistema
capitalista um dinamismo contraditório incompatível com a noção de "equilíbrio de mercado"
ou de "equilíbrio de poder". Tampouco existe um padrão monetário internacional estável, como
pretendem postular as teorias
monetárias desde os economistas
clássicos ingleses, que sempre andaram em busca de uma "constante", por meio da qual se pudesse medir o valor da riqueza universal. Tornar a moeda independente do poder político dos Estados é uma obsessão recorrente dos
economistas, como demonstram
tanto a proposta do Plano Keynes
nas reuniões preparatórias de
Bretton Woods como a atual doutrina neoliberal dos bancos centrais independentes em plena globalização financeira que levou ao
paroxismo a politização do valor
da moeda americana.
Para alguns economistas e sociólogos de esquerda e de direita,
a ruptura do chamado "sistema
de Bretton Woods" e as periódicas
desvalorizações do dólar estão associadas à decadência da hegemonia americana ou à crise definitiva da "ordem capitalista". Para outros, agora que os ex-impérios milenares, a Índia e a China,
estão sendo incorporados à economia capitalista mundial como
Estados nacionais independentes
e o império soviético ruiu, trata-se
de uma vitória definitiva do capitalismo liberal e o caminho para
uma "ordem unipolar".
O fato é que, mais uma vez, estamos num momento de descompasso entre a geoeconomia e a
geopolítica tanto na Europa
quanto na Ásia, sem esquecer a
situação das periferias sul-americanas e africanas. Não estão à vista nem o "fim do império americano" nem o surgimento de um
novo "hegemon", mas tampouco
desapareceram os Estados nacionais, que são hoje a forma de organização política que mais se generalizou depois da descolonização. Apenas a hierarquia dos Estados mudou e seu raio de manobra para fazer a guerra e políticas
financeiras autônomas é mais limitado, como sempre ocorre em
períodos de intensa globalização
financeira e concentração de poder político.
Maria da Conceição Tavares, 73, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professora associada da Universidade de
Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet:
www.abordo.com.br/mctavares
E-mail -
mctavares@abordo.com.br
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