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OPINIÃO ECONÔMICA
Paz, queremos paz
RUBENS RICUPERO
Farto de autógrafos e fotografias, de entrevistas para
jornais e depoimentos para estudantes, de pedidos de prefácios
elogiosos para gênios poéticos incompreendidos, Drummond culminava seu "Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz" implorando pateticamente: "Quero
a paz das estepes / a paz dos descampados / a paz do pico de Itabira quando havia pico de Itabira /
a paz de cima das Agulhas Negras
/ a paz de muito abaixo da mina,
mais funda e esboroada de Morro
Velho / a paz / da / paz".
É o que hoje temos vontade de
gritar, ao ver como este ano inaugurado pelos bombardeios no
Afeganistão se encerra agourentamente pela aproximação inexorável da guerra contra o Iraque. Como se fosse pouco, a Coréia do Norte, em tática oposta à
de Bagdá, multiplica as confissões
comprometedoras sobre suas
(más) intenções nucleares.
O que o Pentágono em resposta
multiplica são ameaças: a de que
tem a capacidade de desencadear, ao mesmo tempo, duas
guerras fulminantes, uma contra
o Iraque, outra contra a Coréia
do Norte, a de que não hesitará,
se preciso, em ser o primeiro -como no Japão em 1945- a usar
bombas atômicas, até mesmo
contra países que assumiram o
compromisso de não desenvolver
armas nucleares; a de que poderá
fazê-lo, eventualmente, em reação a ataques químicos ou bacteriológicos dos iraquianos. Por sua
vez, no Oriente Médio, o estoque
de ódio e rancor se renova constantemente ao espetáculo das humilhações, massacres, atentados
suicidas, demolições deliberadas
e expulsões, desespero lancinante
de funerais de crianças e mulheres, que se instalam em nossos
aparelhos de TV como a rotina
obrigatória dos noticiários cotidianos.
Após o rápido entreato de ilusões que se seguiu à queda do muro de Berlim, o novo século cada
vez se parece mais ao trágico
"curto século 20", introduzido pela primeira das guerras de destruição maciça de populações civis e tornado infame por Auschwitz e Hiroshima, antes de se desintegrar com o colapso do comunismo. Pensávamos ter deixado
definitivamente para trás os piores horrores do século 20: o genocídio, o terror do extermínio atômico, a expulsão de populações
inteiras em nome da "purificação
étnica". Descobrimos agora que
estão de volta alguns dos mais sinistros sintomas do culto da violência, que corrompeu a alma daquele século. Os neoconservadores enlouquecidos que dominam
as fundações direitistas influentes
no pensamento estratégico dos
EUA tiraram as lições erradas do
naufrágio da URSS. Para eles, o
realismo cru do poder, a embriaguez resultante da superioridade
esmagadora de armamentos tornam dispensável a prévia exigência de justiça com base irredutível
da paz genuína. Não podendo
(ou não querendo) oferecer a justiça a palestinos, árabes e outros
rebeldes, julgam poder substituí-la pelo excesso de sofrimento e o
medo do castigo. Sua lógica é tortuosa e não enxerga contradições
em recorrer à violência para liquidar com a violência, em promover belicosamente a não-proliferação de armas de destruição
em massa e, simultaneamente,
rechaçar o tratado contra as minas pessoais, sabotar o Tribunal
Penal Internacional, enfraquecer
a convenção sobre armas bacteriológicas, ameaçar de ataques
nucleares os desarmados.
A verdade é que, se a paz é contagiosa, a guerra, a agressão, o
confronto, não o são menos. Há
um certo mecanismo automático
na engrenagem da paz, como na
comunhão dos santos, pela qual
os méritos são reversíveis e o efeito pacificador de um ato termina
às vezes por fazer-se sentir onde
menos se espera. Quem imaginaria, por exemplo, que o fim da implacável disputa ideológica da
Guerra Fria acabaria por contaminar positivamente um conflito
que, em aparência, nada tinha a
ver com ela, desmontando inesperadamente o apartheid da África
do Sul? Da mesma forma, nos 11
breves anos entre a queda do muro de Berlim e os atentados terroristas de 11 de setembro, muitos
problemas desesperadamente encruados encontraram remédio
pacífico surpreendente além do
apartheid, a divisão da Alemanha, a transição democrática dos
regimes comunistas na Europa
Central e Oriental, a dissolução
sem sangue nem vinganças da
URSS, a guerra civil no Camboja,
em Moçambique, a guerrilha na
América Central. Dos que sobraram -Oriente Médio, Coréia,
Cachemira, Taiwan-, alguns
dos mais perigosos pareciam estar
encaminhados em processo difícil, mas progressivo, de negociação, cujo exemplo mais notável
foi o de Oslo entre israelenses e
palestinos. Hoje, contudo, em toda a parte, na Tchetchênia e na
Palestina, na Coréia ou na Cachemira, as feridas se reabrem, os
conflitos se reaproximam do ponto de explosão. Não se trata de
conjugação dos astros, nem de
mera coincidência. É que a estratégia de antagonismo e confrontação dos super-poderosos, a opção de privilegiar as divergências,
não os pontos de interesse comum, espalhar-se qual tinta em
mata-borrão. Em cada um dos focos infeciosos do globo, os violentos, os partidários da guerra sentem-se encorajados pelo prestigioso exemplo dos grandes e deles esperam, se não compreensão e
apoio, ao menos tolerância e silêncio cúmplice.
É por isso que a prioridade dos
nossos dias não é mais apenas a
denúncia de uma globalização
perversa, mas a recusa da engrenagem da guerra e a reafirmação
da paz, novo nome do desenvolvimento. Em "A Forma Secreta",
Augusto Meyer evocava, a propósito do pitoresco desafio lançado
em Roma, na Páscoa de 1536, por
Carlos 5º a Francisco 1º, o comentário de Salvador de Madariaga,
que via no discurso "algo de viento de locura", como o que sopra
em nossos dias. Como se lesse das
páginas do Quixote, o imperador
provocava: "Por lo tanto, yo prometo a ustedes, delante deste sacro colégio (...) si el rey de Francia
se quiere conducir conmigo en armas de su persona a la mia, de
conducirme con él armado, o desarmado, en camisa, con espada o
puñal, en tierra, o en mar, en un
puente, o en isla, en campo cerrado, o delante de nuestros ejercitos,
o doquiera, o como quiera él,
guerrá y justo sea". Depois de prometer que, no dia seguinte, partiria para a Lombardia, "adonde
nos prepararemos para rompermos (...) las cabezas," terminava
enfaticamente com as palavras
que faço minhas nos albores da
esperança de um novo ano: "...y
con esto acabo diciendo una vez y
tres: que quiero paz, que quiero
paz, que quiero paz...".
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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