São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

As quatro frentes

LUCIANO COUTINHO

O governo Lula precisará vencer desafios simultâneos em quatro frentes. Com uma política macroeconômica ortodoxa, terá que agradar aos mercados de capitais e evitar que o desfinanciamento do desequilíbrio das contas externas se transforme em mais choques sobre a taxa de câmbio e sobre a inflação. Por meio de uma política agressiva de comércio exterior, suportada por eficientes políticas agrícola e industrial, precisará travar a batalha decisiva de construção de um superávit comercial crescente e sustentável, condição "sine qua non" para a recuperação da autonomia do Estado brasileiro. O novo governo precisará, ademais, dar respostas afirmativas no plano das políticas sociais, com ações bem focadas e eficazes, dentro de um quadro de duro constrangimento fiscal. A criatividade para melhorar a qualidade das políticas sociais será imprescindível para manter o apoio e o reconhecimento da opinião pública -hoje tão benigna e favorável à pessoa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Esse último desafio é, por fim, essencial à difícil tarefa política de manter uma base parlamentar significativamente ampla e coesa para poder governar.
Não será nada fácil. A margem de manobra é mínima e é muito salgado o preço que terá que ser pago para evitar o risco de um colapso externo com recessão e recrudescimento inflacionário. O governo FHC deixa uma herança maligna. O endividamento público deu enormes saltos e persiste sendo refinanciado sob condições muito onerosas. O orçamento fiscal está reduzido e sua execução completamente constrangida pela inexorável necessidade de obter um portentoso superávit primário sob o programa acordado com o FMI. A autonomia de gasto do Estado é, portanto, limitadíssima. Acresce que os mecanismos de governança do Estado sobre os investimentos estratégicos foram desestruturados. De fato, os principais instrumentos de funding foram debilitados (exceção, apenas, do FAT); os sistemas setoriais de infra-estrutura estão desorganizados e deficientemente regulados por agências insuficientemente capacitadas. Não há estratégia de longo prazo definida nem, tampouco, estruturação legal e financeira suficiente para as áreas de energia elétrica, telecomunicações, saneamento básico e habitação. Salva-se unicamente a Petrobras, que dispõe de um programa organizado de inversões, com funding já equacionado. É urgente, por isso, o desafio de conceber alternativas para regenerar a capacidade pública de investimento e reorganizar os sistemas setoriais de infra-estrutura econômica e social.
A curto prazo o novo governo terá, ainda, o ônus de enfrentar a ameaça de retorno da inflação, posto que o atual deixa a inflação correndo (média móvel trimestral) ao ritmo de 100% a.a. nos preços de atacado (IPA) e de 34% a.a. nos preços ao consumidor (IPCA). Uma invasão americana ao Iraque, muito provável, já no início de 2003, deve afetar os preços do petróleo e reviver a aversão dos investidores internacionais ao risco. Mais tensões sobre o câmbio e sobre a inflação podem, portanto, emergir e onerar ainda mais a política macroeconômica.
Nessas circunstâncias o raio de manobra para políticas e gastos sociais, já estreito, pode ficar ainda mais restrito pela necessidade de arrochar a política fiscal e, possivelmente, de negociar com o FMI um reforço de recursos externos. As contradições entre os objetivos e os meios para avançar nas quatro frentes tenderiam a ficar mais agudas. Sob esse cenário desgastante, será importantíssima a eficiência da articulação política do governo mormente depois que passar a fase de lua-de-mel. Desgastes inúteis precisarão ser evitados e o encaminhamento de projetos requererá uma notável capacidade para construir apoios mais amplos, num novo contexto legal que limita sobremodo o uso da medida provisória.
Por tudo isso, a política de fomento à exportação (e à substituição competitiva de importações) parece ser única via de liberação dessas contradições ao criar as condições para, de um lado, atenuar e depois remover o constrangimento financeiro externo e, de outro lado, abrir espaços para o crescimento da produção, do emprego e da renda. Se não houver clareza do comando do governo para avançar prioritária e incisivamente nessa frente, será vão o oneroso esforço para cumprir a compulsória agenda macroeconômica ortodoxa-conservadora deixada como herança maldita pelo governo FHC.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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