|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BERNARDO CARVALHO
O Quixote da sociedade de consumo
Para Pasolini, o novo fascismo era a própria sociedade de consumo, da cultura de massa
|
POR OCASIÃO de uma mostra
dos filmes de Pasolini e de
uma exposição que termina
no próximo dia 20, em Lisboa, a Cinemateca Portuguesa publicou um
belo catálogo ("Pier Paolo Pasolini, o
Sonho de uma Coisa") a cargo do crítico e pesquisador Antonio Rodrigues. Num dos textos, Bernardo
Bertolucci conta como conheceu o
poeta e diretor de "Teorema". E cita
uma das frases mais terríveis e polêmicas do cineasta: "Não há desejo do
carrasco que não seja sugerido pelo
olhar da vítima".
A frase está num artigo publicado
no "Il Mondo", em 1974, pouco mais
de um ano antes de Pasolini ser brutalmente assassinado. Corresponde
ao preceito psicanalítico de que o
desejo de um sujeito é sempre constituído pelo desejo de outro mas
também ao pensamento de Sade,
em cujos textos Pasolini se baseou
para realizar seu último filme, "Saló". O corpo dilacerado do cineasta
foi encontrado na praia de Ostia,
quando o filme ainda não tinha sido
lançado na Itália.
Num texto sobre a guerra civil em
Angola, o polonês Ryszard Kapuscinski alerta que nunca se deve olhar
os algozes nos olhos, para que não se
sintam desafiados. O conselho vem
de um repórter com experiência de
sobreviver aos postos de controle
dos guerrilheiros mais sanguinários
no interior da África e de alguma
forma corrobora, por um viés inusitado (e prático), a frase de Pasolini.
Não é fácil entendê-la. O poeta e
cineasta, ele próprio vítima da violência mais revoltante, não a usava
para justificar o carrasco pela ambivalência sadomasoquista, muito
menos para defender o fascismo. Ao
contrário, tentava entender e falar
do que ninguém queria ouvir, de tabus que, enquanto permanecerem
como tais, vão permitir que carrascos e fascistas continuem a ser fabricados. Procurava mostrar que o fascismo pode estar nos que se proclamam antifascistas. Assim como no
suposto progressista pode se esconder o pior dos reacionários.
"Defendo o sagrado porque é a
parte do homem que menos resiste
à profanação do poder, a mais ameaçada pelas instituições da igreja. (...)
O signo sobre o qual trabalho é sempre a contaminação" (entre opostos). Comunista entre católicos, homossexual entre comunistas, antinacionalista entre patriotas, militante ao mesmo tempo do sagrado e
do profano, herege onde quer que
estivesse, Pasolini foi atacado por
todos os lados. A grandeza desse
pensamento provocador e "escandaloso" vem do entendimento de
que a ortodoxia é incapaz de dar respostas às perguntas mais cruciais e
que é preciso estar atento para não
transformar a própria heresia numa
nova doutrina. Em depoimento ao
filme "Pasolini Enragé" (Pasolini
enraivecido), do francês Jean-André Fieschi, o poeta e cineasta diz:
"Peço (...) que considerem tudo o
que eu disse como pretextual (...). Na
realidade, não disse as coisas que
gostaria e deveria ter dito e nenhum
de nós consegue dizer estas coisas.
As coisas verdadeiras e sinceras só
conseguem ser ditas raramente, nos
instantes de inspiração poética".
Os fascistas já não se faziam distinguir na Itália do pós-guerra. Podiam ser jovens ou velhos, estar tanto à direita como à esquerda. Para
Pasolini, o novo fascismo era a própria sociedade de consumo, da cultura de massa e da televisão e seu
consenso desenvolvimentista: produzir e consumir. E produzir sobretudo corpos adestrados e aptos a essas duas funções, eliminando no
processo tudo o que fosse marginal
ou diferente: "Nunca nenhum homem deve ter sido tão normal e conformista quanto o consumidor".
Hoje, esse pensamento é ao mesmo tempo visionário e inconcebível.
Só pode sobreviver como paradoxo.
O mundo se globalizou. Na Itália,
Berlusconi chegou a premiê. E a arte
para Pasolini era uma aventura quixotesca, um ato de resistência contra a homogeneização, contra a
transformação de todos em pequenos burgueses consumidores. Para
ele, a sobrevivência do artista (e do
intelectual) dependia de uma guerra
contra a uniformização e o consenso, porque o artista é (ou deveria ser)
a alteridade, a marginalidade e a diferença. Essa guerra parece em
grande parte perdida. Basta perguntar a um jovem poeta, escritor ou cineasta o que acha do seguinte: "Se
um autor de versos, de romances, de
filmes, encontrar cumplicidade, conivência ou compreensão na sociedade na qual trabalha, não é um autor. Um autor só pode ser um estranho numa terra hostil: habita a morte, ainda que habite a vida". E é bem
possível que o jovem artista, preocupado com a sua inserção no mercado
(ocupado em se fazer consumir),
pergunte de volta se esta não seria,
afinal, a declaração de um fascista.
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Fashion Rio: Raica quer casar de "véu e grinalda" Índice
|