São Paulo, terça-feira, 06 de junho de 2006

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BERNARDO CARVALHO

O Quixote da sociedade de consumo


Para Pasolini, o novo fascismo era a própria sociedade de consumo, da cultura de massa

POR OCASIÃO de uma mostra dos filmes de Pasolini e de uma exposição que termina no próximo dia 20, em Lisboa, a Cinemateca Portuguesa publicou um belo catálogo ("Pier Paolo Pasolini, o Sonho de uma Coisa") a cargo do crítico e pesquisador Antonio Rodrigues. Num dos textos, Bernardo Bertolucci conta como conheceu o poeta e diretor de "Teorema". E cita uma das frases mais terríveis e polêmicas do cineasta: "Não há desejo do carrasco que não seja sugerido pelo olhar da vítima".
A frase está num artigo publicado no "Il Mondo", em 1974, pouco mais de um ano antes de Pasolini ser brutalmente assassinado. Corresponde ao preceito psicanalítico de que o desejo de um sujeito é sempre constituído pelo desejo de outro mas também ao pensamento de Sade, em cujos textos Pasolini se baseou para realizar seu último filme, "Saló". O corpo dilacerado do cineasta foi encontrado na praia de Ostia, quando o filme ainda não tinha sido lançado na Itália.
Num texto sobre a guerra civil em Angola, o polonês Ryszard Kapuscinski alerta que nunca se deve olhar os algozes nos olhos, para que não se sintam desafiados. O conselho vem de um repórter com experiência de sobreviver aos postos de controle dos guerrilheiros mais sanguinários no interior da África e de alguma forma corrobora, por um viés inusitado (e prático), a frase de Pasolini.
Não é fácil entendê-la. O poeta e cineasta, ele próprio vítima da violência mais revoltante, não a usava para justificar o carrasco pela ambivalência sadomasoquista, muito menos para defender o fascismo. Ao contrário, tentava entender e falar do que ninguém queria ouvir, de tabus que, enquanto permanecerem como tais, vão permitir que carrascos e fascistas continuem a ser fabricados. Procurava mostrar que o fascismo pode estar nos que se proclamam antifascistas. Assim como no suposto progressista pode se esconder o pior dos reacionários.
"Defendo o sagrado porque é a parte do homem que menos resiste à profanação do poder, a mais ameaçada pelas instituições da igreja. (...) O signo sobre o qual trabalho é sempre a contaminação" (entre opostos). Comunista entre católicos, homossexual entre comunistas, antinacionalista entre patriotas, militante ao mesmo tempo do sagrado e do profano, herege onde quer que estivesse, Pasolini foi atacado por todos os lados. A grandeza desse pensamento provocador e "escandaloso" vem do entendimento de que a ortodoxia é incapaz de dar respostas às perguntas mais cruciais e que é preciso estar atento para não transformar a própria heresia numa nova doutrina. Em depoimento ao filme "Pasolini Enragé" (Pasolini enraivecido), do francês Jean-André Fieschi, o poeta e cineasta diz: "Peço (...) que considerem tudo o que eu disse como pretextual (...). Na realidade, não disse as coisas que gostaria e deveria ter dito e nenhum de nós consegue dizer estas coisas. As coisas verdadeiras e sinceras só conseguem ser ditas raramente, nos instantes de inspiração poética".
Os fascistas já não se faziam distinguir na Itália do pós-guerra. Podiam ser jovens ou velhos, estar tanto à direita como à esquerda. Para Pasolini, o novo fascismo era a própria sociedade de consumo, da cultura de massa e da televisão e seu consenso desenvolvimentista: produzir e consumir. E produzir sobretudo corpos adestrados e aptos a essas duas funções, eliminando no processo tudo o que fosse marginal ou diferente: "Nunca nenhum homem deve ter sido tão normal e conformista quanto o consumidor".
Hoje, esse pensamento é ao mesmo tempo visionário e inconcebível. Só pode sobreviver como paradoxo. O mundo se globalizou. Na Itália, Berlusconi chegou a premiê. E a arte para Pasolini era uma aventura quixotesca, um ato de resistência contra a homogeneização, contra a transformação de todos em pequenos burgueses consumidores. Para ele, a sobrevivência do artista (e do intelectual) dependia de uma guerra contra a uniformização e o consenso, porque o artista é (ou deveria ser) a alteridade, a marginalidade e a diferença. Essa guerra parece em grande parte perdida. Basta perguntar a um jovem poeta, escritor ou cineasta o que acha do seguinte: "Se um autor de versos, de romances, de filmes, encontrar cumplicidade, conivência ou compreensão na sociedade na qual trabalha, não é um autor. Um autor só pode ser um estranho numa terra hostil: habita a morte, ainda que habite a vida". E é bem possível que o jovem artista, preocupado com a sua inserção no mercado (ocupado em se fazer consumir), pergunte de volta se esta não seria, afinal, a declaração de um fascista.


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