São Paulo, quarta-feira, 10 de março de 2010

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Crítica/"Dissidente"

Espetáculo tem méritos, mas esconde riquezas do texto

Montagem do Núcleo Caixa Preta abafa qualidade minimalista da dramaturgia

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

Encenar é trair e muitas vezes a traição de um texto revela sua grandeza. Não é o caso do espetáculo "Dissidente", que encena pela primeira vez no Brasil uma peça de Michel Vinaver, talvez o maior dramaturgo francês vivo. A montagem do Núcleo Caixa Preta, dirigida por Miriam Rinaldi, tem méritos, mas a ânsia de valorizar a dramaturgia esconde sua maior riqueza.
"Dissidente, sem Dúvida" é a menos complexa das quatro peças que Vinaver escreveu nos anos 1970 e que foram reunidas por ele numa publicação sob o título de "Peças de Câmara".
Com características minimalistas, têm em comum uma economia radical na estrutura dramática, sem rubricas e com diálogos curtos que não contextualizam a ação. Fruí-las é focar mais no aspecto musical, no ritmo e na tonalidade de suas linhas, do que na trama. Ainda que não cheguem à abstração, elas falam por si e repelem ilustrações de sentidos. Solicita-se do público, nas palavras do autor, "uma escuta atenta".
O mais experimental desses textos, "A Procura de Emprego - Uma Peça em Trinta Pedaços", de 73, desenvolve variações em torno do tema da ocupação -de posto de trabalho ou de função social- a partir de quatro personagens situados em lugares distintos. Suas falas mais se justapõem do que se encaixam. Em "Dissidente, sem dúvida", de 76, este caráter de montagem de fragmentos permanece, mas com diálogos diretos entre os personagens de uma mãe divorciada e seu filho, e com unidade de lugar, o apartamento onde eles moram.
A encenação de Miriam Rinaldi dribla as dificuldades de um espaço cênico limitado com a inteligente recusa de uma caracterização naturalista. Algumas cadeiras vermelhas enfileiradas e cortinas de envelopes plásticos transparentes, repletos de produtos industriais, bastam-se na ambientação. A evocação da natureza econômica que reveste as relações humanas é coerente com o espírito que animava Vinaver na época em que escreveu a peça, marcada, na França, por fortes conflitos entre capital e trabalho.
Os lacônicos chavões ditos pelos personagens expressam as marcas de uma sociedade afundada nos valores mercantis. Já as opções de construir partituras silenciosas entre as doze cenas da peça e de sobrepor às falas dos personagens uma intensa ação física dos atores conflitam com o teatro de Vinaver.
Se valorizam os trabalhos de Cácia Goulart e José Geraldo Rodrigues, propondo-lhes um desempenho virtuoso diante daquele mínimo que o autor lhes oferece, afastam o espectador do que seria mais próprio nas suas peças. Ao ilustrarem as falas, talvez supondo de que elas fossem muito pouco, acrescentam-lhes um elemento estranho, performativo.
Os criadores do espetáculo merecem elogios pela iniciativa de montar Vinaver e pelo cuidado com que o fizeram. A tentação de preencher o que era para permanecer vazado é comum nas montagens de suas peças, e isso nunca o incomodou muito. Mas o que havia de mais rico acabou abafado, ainda que com ótimas intenções.


DISSIDENTE

Quando: qui. e sex., às 21h; até 1/4
Onde: Sesc Consolação (r. Dr. Vila Nova, 245; tel. 0/xx/ 11/3234-3000)
Quanto: R$ 10
Classificação indicativa: 14 anos
Avaliação: bom




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