São Paulo, segunda-feira, 19 de setembro de 2005

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EXPOSIÇÃO

Inaugurada pelo presidente Vladimir Putin, mostra no museu nova-iorquino reúne obras de dez instituições

Guggenheim recebe 800 anos de Rússia

KATHRYN SHATTUCK
DO "THE NEW YORK TIMES"

O ponto de exclamação pode ser bombástico, mas "Rússia!", o título da nova grande exposição do museu Guggenheim, em Nova York, não faz mais do que sugerir de maneira muito distante o esforço hercúleo envolvido na organização de uma mostra que abrange 800 anos de arte de um império de grandes dimensões.
Segundo os curadores, fazer uma mostra que abrange algumas das mais renomadas e também das menos viajadas obras-primas da arte russa foi uma proeza diplomática que evocou os anos da glasnost. A data de abertura da exposição, 16 de setembro, foi escolhida para coincidir com a abertura da 60ª Assembléia Geral das Nações Unidas, e o presidente da Rússia, Vladimir Putin, aceitou o convite para visitar a mostra.
"As negociações foram demoradas e corteses, mas preciso reconhecer que não foram fáceis", disse um dos curadores do Guggenheim, Robert Rosenblum.
A idéia da exposição surgiu em 2002, num encontro em Veneza, na cobertura da Coleção Peggy Guggenheim nessa cidade. Ali, Thomas Krens, o diretor do Guggenheim e ardente russófilo, foi abordado por Mikhail Shvydkoi, o então ministro da Cultura russo.
"Expliquei que seria muito interessante montar uma exposição forte de belas artes porque muito poucas pessoas nos EUA sabem da arte importante da Rússia", comentou o ex-ministro e atual diretor do órgão russo responsável pela cultura e pelo cinema.
Krens já conhecia o ministro da Cultura devido à parceria do Guggenheim com o museu Hermitage de São Petersburgo: três mostras de arte soviética de vanguarda e sua pesquisa sobre ícones russos. A proposta o deixou intrigado. E, como é de seu costume, ele imediatamente começou a pensar em termos grandes. Vale lembrar que Krens é o homem responsável por "África - A Arte de Um Continente" (1996), "China: 5.000 Anos" (1998) e "Império Azteca" (2004).
Ele começou a desfiar perguntas: como foi que as pinturas russas de ícones acabaram inspirando a vanguarda? Por que a pintura russa extraordinária dos séculos 18 e 19 é virtualmente desconhecida no Ocidente? Que presciência levou Pedro, o Grande, Catarina, a Grande e Nicolau 1º a montar suas enciclopédicas coleções de pinturas e esculturas européias ocidentais nos século 18 e 19? O que levou os marchands moscovitas Sergei Shchukin e Ivan Morozov a adquirir trabalhos de Picasso no início do século 20?
"Havia várias idéias circulando no ar", contou Krens. "Perguntamos se existe uma história coerente da arte russa que possa ser compreendida." De sua perspectiva, existe. Convocando especialistas do Guggenheim e dos maiores museus russos, Krens montou uma equipe, e, a partir dela, o que afirma ser a mais abrangente mostra de arte russa a sair do país.
De acordo com Shvydkoi, é incomum que se apresentem obras de arte russa vindas de mais de dez museus em uma só mostra.
Krens e seus curadores decidiram organizar as obras de arte em oito capítulos: ícones russos dos séculos 13 a 17; coleções imperiais do século 18 e início do século 19; arte do século 18, de influência ocidental; a era de ouro da arte russa da primeira metade do século 19, e as mostras itinerantes apresentadas na segunda metade desse século pelo grupo conhecido como Caminhantes; as obras-primas modernistas francesas colecionadas por Shchukin e Morozov; exemplos de simbolismo, cubo-futurismo, suprematismo e construtivismo do século 20; o realismo soviético da era socialista e a arte soviética entre a morte de Stalin e o fim da Guerra Fria.
Mas traduzir tudo isso numa mostra real -sem falar em conservar o controle sobre a tese, enquanto estudiosos russos e americanos debatiam o conteúdo- revelou-se um desafio grande.
"Sempre que se pede a colaboração de estudiosos, a tendência é que queiram dizer de que maneiras eles fariam tudo diferente", comentou Krens, referindo-se aos nove especialistas que trabalharam na exposição. "E havia o problema da redução do meio. Fizemos desta mostra basicamente uma mostra de pintura. Mas e a arte decorativa, e a fotografia, e a escultura, como ficavam?"
Krens procurou a ajuda de Zelfira Tregulova, vice-diretora dos Museus do Kremlin em Moscou.
Após dois dias de discussões, ela e os curadores do Guggenheim, incluindo Lisa Dennison, Robert Rosenblum e Valerie Hillings, redigiram uma lista de peças.
Então foi pedida a colaboração de Evgenia Petrova, do Museu do Estado Russo, e Lidia Iovleva, da Galeria Estatal Tretyakov, museus dos quais saiu boa parte do conteúdo de "Rússia!".
Hillings compreende o russo, mas não sabe escrever a língua; alguns dos especialistas, como Iovleva, não falam inglês. Por esse motivo, conta Hillings, a comunicação "foi um processo penoso".

Temas
Os curadores tomaram nota de temas: camponeses, espiritualidade, "a situação do indivíduo dentro da sociedade". E começaram a enxergar influências entre gerações, com gerações posteriores "aceitando ou desmontando a arte que as antecedeu".
Eles tiveram que levar em conta questões logísticas. Algumas peças que todos queriam muito para a exposição, como os retratos modernistas em têmpera de Valentin Serov, eram frágeis demais para ser transportados. Outro tesouro, "Ivã o Terrível e Seu Filho Ivã" (1885), de Ilya Repin, nunca é cedido porque uma vez foi cortado por um agressor.
"Algumas pinturas acadêmicas fantásticas do século 19 nós não pudemos trazer porque são grandes demais", contou Hillings. Durante todo o processo, houve concorrência com outros museus, num ano em que a moda "czarina" domina as passarelas e em que a arte russa está em voga em Paris, Bruxelas e Berlim.
"O Museu d'Orsay vai abrir uma mostra russa quatro dias depois da abertura da nossa, então tivemos de disputar as peças cedidas da Rússia", contou Hillings. "Tivemos grande sorte em ter parceiros de boa vontade nesses museus russos."
Em 1977, quando o Metropolitan, em Nova York, organizou uma mostra de arte russa, as tensões decorrentes da Guerra Fria criaram enormes dificuldades para o museu conseguir peças, ela contou, e o que o museu esperava receber nem sempre era o que de fato chegava. "Realmente nos beneficiamos da mudança dos tempos, da troca da guarda", disse ela.
O curador Robert Rosenblum vê a situação sob outra ótica. "Eles são pós-soviéticos, mas ainda agem como soviéticos", comentou. "Tudo continua como nos velhos tempos. Foram os russos que escolheram a maior parte do que acharam que deveria ser enviado. Tínhamos idéias próprias; diferentemente deles, tínhamos uma idéia melhor de o que iria agradar ao público americano."
Petrova se sentiu frustrada pela ênfase grande dada pelos outros curadores à pintura. "Minha opinião era que deveríamos incluir uma parte de objetos da cultura. Não apenas obras-primas da história sistemática da arte russa, mas também objetos que refletem a vida", disse. Em tom mais reflexivo, ela acrescentou: "Os curadores de uma exposição deveriam ser um ou dois, não seis ou sete."
Mas, para todos os curadores, houve uma questão na qual as opiniões foram unânimes. "Deveríamos concluir a mostra com "O Homem Que Voou Para o Espaço", de Ilya Kabakov", contou Tregulova. Essa instalação, que foi cedida pelo Centro Pompidou, de Paris, e recriada por Kabakov para a mostra do Guggenheim, mostra um decadente apartamento comunitário com uma cama dobrável e um teto quebrado, através do qual um homem aparentemente se fez disparar em direção ao espaço e à luz celestial.
Para Tregulova, a visão de Kabakov constitui o ponto final perfeito para essa retrospectiva da contribuição russa para a civilização mundial ao longo de oito séculos, algo que "permanece como uma das maiores conquistas do espírito humano". "Espero que as pessoas compreendam o que tentamos dizer com esta exposição", ela concluiu.


Tradução de Clara Allain

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