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PSICANÁLISE DO MESSIAS
Caracterização do líder de Canudos evita cacoetes deterministas e evolucionistas para enfatizar o embate entre ímpeto criador e meio social
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por Jurandir Freire Costa
A cem anos da data de publicação, "Os Sertões"
ganha uma atualidade surpreendente. O interesse pelos chamados "fanatismos religiosos" voltou à tona, após os atentados terroristas de 11
de setembro. Desde então, muito se discutiu sobre as
origens do sectarismo e sobre os traços psicológicos de
seus seguidores e mentores.
O relato da Guerra de Canudos e do papel que teve nela Antônio Conselheiro lança uma luz particular sobre o
fenômeno. A matéria-prima da narrativa é a mesma
dos clássicos estudos do gênero, mas a interpretação sugerida foge do habitual. Os líderes, as massas e a crença
"fanática" estão lá, assim como estão, por exemplo, em
Freud ou em Elias Canetti. As conclusões a que chega
Euclides da Cunha, todavia, são originais e merecem
uma atenção renovada.
Cada ser humano, diz ele, é uma súmula de seu tempo, e cada tempo é a extroversão sociocultural dos caracteres psicofísicos de indivíduos pertencentes às diversas "raças". Antônio Conselheiro foi o ponto de contato de uma vida com uma época. Suas idiossincrasias
se associaram à desorganização social que se seguiu ao
advento da República, permitindo o surgimento de Canudos, resposta religiosa ao desmoronamento da ordem monárquica.
"Só se pode avaliar a atitude [do Conselheiro]", diz o
autor, "considerando a psicologia da sociedade que o
criou". O "infeliz, destinado à solicitude dos médicos,
veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a história como poderia ter ido para o hospício".
A face da criatura revela o método do criador. Antônio Conselheiro, em "Os Sertões", é um personagem híbrido, com um pé no "hospício" e outro na "história".
Nisso reside o vício e a virtude da alquimia euclidiana.
O Conselheiro "de hospício" é uma alma entrevada, rabiscada de forma a realçar as marcas da "degenerescência", da "regressão" e do "atraso" civilizatórios produzidos pela malfadada miscigenação "racial" brasileira.
O livro, sob esse aspecto, obviamente caducou. Euclides da Cunha, como tantos outros, sucumbiu à sedução
teórica do evolucionismo social e psicológico do século
19 e começo do 20. Outra coisa é o Conselheiro "da história". Diferente do primeiro, este último não era uma
coleção inerte de estigmas raciais "degenerados". Era
uma vida singular, tecida na história de maneira irrepetível. Euclides da Cunha, aqui, se livra do entulho evolucionista e dá asas ao engenho e à arte.
Em primeiro lugar, ele passa da história pessoal do líder para a do povo brasileiro sem pedir licença aos
guardiões da pureza epistemológica. A desenvoltura é
salutar. O mais íntimo e o mais público, o biográfico e o
sociológico, são descritos como pausas provisórias, instantes condensados do contínuo e móvel bloco de estímulos que afetam a sensibilidade do sujeito.
A fina lâmina da existência ignora as fronteiras acadêmicas. Ora pende para o externo, o coletivo, o social, ora
para o interno, o psíquico, o pessoal, segundo as oscilações, pressões ou solicitações do entorno. Líderes religiosos ou loucos de "hospício" não têm "intrinsicalidade" transistórica. Ambos são produto do olhar, da força
ou da violência dos que podem fixá-los em uma ou outra posição do espectro sociocultural. Para uns, o Conselheiro era um louco, para outros, um santo e um sábio. Tudo dependia da visão de mundo dos praticantes
da razão ou da religião.
Profusão da vida Em segundo lugar, a perspectiva
histórica euclidiana expõe a tensão entre a economia intelectual do especialista e a prolixidade do mundo. Para
explicar e predizer, queremos o simples, o linear, o estável. A vida, entretanto, é barroca ou rococó. Ela não
poupa, não calcula e não se contenta com o mínimo, se
pode esbanjar. O ornamental e o funcional, o antigo e o
recente, o sinuoso e o reto, o belo e o feio, tudo é bem-vindo na criação incessante de novas formas de ser.
Euclides da Cunha embarca sem receio na profusão
da vida. Suas explicações das características mentais,
morais e espirituais de Antônio Conselheiro, apesar dos
cacoetes evolucionistas, nunca recorrem ao determinismo surrado do tipo "isso foi causa daquilo". O visionário messiânico não estava em estado latente no passado
genético ou familiar do "tranquilo e tímido" menino
Antônio Vicente Mendes Maciel. Em matéria de comportamento humano, gene nenhum tem penetrância
completa e expressividade constante -e ninguém é
puro replicante das neuroses dos pais.
Somos o conjunto de nossas ações possíveis ou reais
sobre o mundo confrontado com os obstáculos que se
opõem à nossa criatividade. Um ambiente receptivo ao
risco da experimentação e à variação das individualidades incentiva a pluralidade expressiva da vida; um ambiente estreito, rígido, conservador tende a frear a liberdade com que a vida se reinventa.
A metamorfose de Antônio Vicente em Antônio Conselheiro se deveu à resistência que o ambiente ofereceu
ao ímpeto criador do primeiro, forçando-o a se converter no segundo. A pobreza do sertão nordestino; o adultério da mulher; a ganância dos negociantes; a cultura
dos jagunços; a religiosidade popular; a mesquinhez invejosa de certos párocos; a prepotência das autoridades
eclesiásticas; a leviandade das elites políticas do Rio de
Janeiro; a "opinião pública" mundana e europeizada da
rua do Ouvidor etc., tudo isso fez de Antônio Vicente o
Antônio Conselheiro. Tudo isso empurrou o pacífico
construtor de capelas e o humilde fazedor de milagres
para fora da República brasileira, que já nasceu excluindo a maioria do seu círculo de eleitos.
Não existe um perfil psicológico do "fanático", conclui Euclides da Cunha. Existem condições que não deixam outra saída ao indivíduo, exceto o "fanatismo".
"Fanatismo" é a réplica dos que encontram na seita o
lugar que o mundo lhes negou; dos que refazem do zero
a própria filiação porque foram deserdados pela tradição; enfim, dos que se mostram na fúria ou no escândalo para não morrerem como se não tivessem existido.
Eixos do mal Antônio Vicente, sem a dureza do
ambiente, talvez tivesse continuado a ser o pacato vendedor de loja que sempre foi, e sua memória, hoje, estaria perdida em algum arquivo empoeirado de paróquia
ou cartório de interior. Quis a fortuna que tudo fosse diferente. As "potências superiores" levaram-no a "bater
de encontro" a uma civilização que só lhe acenou com a
alternativa "hospício" ou "história". Foi para a história.
Não sem antes ter a cabeça decepada, depois de morto,
e o crânio dissecado, de forma a mostrar "no relevo de
circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura".
Dor de uns, bálsamo de outros. Graças a Antônio
Conselheiro e a Euclides da Cunha, conhecemos um
pouco mais como a "civilização" fabrica "eixos do mal"
coalhados de bandidos, marginais, fanáticos, rebeldes e
"loucos criminosos". A lição dos erros é amarga, mas é a
que menos esquecemos.
Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros,
"Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (ed.
Rocco). Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".
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