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METAMORFOSE DAS RAÇAS
Obra mostra ao mesmo tempo absorção e crítica da teoria da degenerescência
introduzida no Brasil pelo cientista Nina Rodrigues
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por Moacyr Scliar
Quando, em 5 de outubro de 1897, as tropas federais entraram em Canudos para o ataque final, Antonio Conselheiro já não estava à frente de seus fiéis. Havia morrido em 22 de setembro. A causa da morte não foi bem esclarecida, mas
bem pode ter sido aquilo que na região era conhecido
como "caminheira", diarréia. Uma prosaica e deprimente condição que vitimava, e ainda vitima, milhões
de brasileiros (crianças, sobretudo) e que está ligada à
má higiene dos alimentos e à deficiente qualidade da
água. Morte inglória, portanto. Mas, de qualquer modo,
o cadáver foi desenterrado e decapitado. A cabeça não
foi, como a de Tiradentes, exibida em público para escarmento da população sertaneja. Não, esses tempos já
haviam passado. Em vez disso, a cabeça foi enviada a
um cientista, para ser estudada: era preciso descobrir o
que havia ali, que poder misterioso capaz de mobilizar
multidões residira naquele cérebro.
O cientista era Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906). Médico, professor da Faculdade de Medicina da
Bahia, Nina Rodrigues era também, como outros doutores de sua geração, etnólogo, autor de obras como "O
Animismo Fetichista dos Negros na Bahia" e "O Alienado no Direito Civil Brasileiro". O trabalho desses cientistas havia sido fortemente influenciado pelas idéias de
Joseph Arthur, conde de Gobineau, que veio para o Rio
de Janeiro como chefe da missão francesa entre abril de
1869 e maio de 1870. Gobineau interessou-se pela mestiçagem no Brasil.
Considerado hoje um dos precursores do racismo nazista, previu que a mistura de raças acabaria levando à
pura e simples extinção da população brasileira. Suas
idéias coincidiam com o pensamento político brasileiro
da época, voltado para o branqueamento e europeização do país, e foram seguidas, em maior ou menor grau,
por instituições voltadas ao estudo antropológico: a Faculdade de Medicina da Bahia, o Museu Nacional e a Escola Militar, no Rio de Janeiro.
As teorias raciais surgidas no Brasil nas últimas décadas do século 19 não eram necessariamente hostis aos
grupos que formavam a nacionalidade. Nina Rodrigues
não desprezava as manifestações culturais dos negros,
que estudou detalhadamente. Mas, para ele, a miscigenação resultaria inevitavelmente em desequilíbrio
mental e -conceito importante- degenerescência.
Médicos importantes como Arthur Ramos e Afrânio
Peixoto foram seus seguidores, membros da chamada
Escola Baiana, que conjugava medicina e antropologia.
"Criminoso nato" Também eram influentes à época as idéias do médico e criminologista italiano Cesare
Lombroso. Lombroso acreditava no "criminoso nato",
cujas caraterísticas manifestar-se-iam inclusive no tipo
da face e na conformação do crânio. Medir e estudar
crânios era uma obsessão da época, o que explica a solicitação a Nina Rodrigues.
Abolicionista, republicano, o jovem Euclides, que era
filho de um pequeno proprietário rural, cursou engenharia primeiro na Escola Politécnica do Rio e depois
na Escola Militar da Praia Vermelha. Ali foi influenciado pelo espírito científico da época, que unia ao positivismo de Comte o evolucionismo de Darwin e de Spencer. Essa ciência desafiava os princípios estabelecidos
pela religião e, ao mesmo tempo, induzia a uma visão
pessimista e até cruel da espécie humana, influenciada
pela idéia da sobrevivência do mais apto.
Em "Os Sertões", Euclides endossa muitas das idéias
de Nina Rodrigues: a guerra sertaneja seria resultado da
alucinada pregação de Antônio Conselheiro, este o portador de uma doença mental que emergiu em toda a sua
intensidade quando a mulher o abandonou por outro
homem: "A mulher foi a sobrecarga adicionada à tremenda tara hereditária", diz Euclides. Tal pregação caiu
em terreno fértil, representado pelas "sub-raças sertanejas (...) destinadas a próximo desaparecimento ante
às exigências crescentes da civilização e à concorrência
material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra".
Para Euclides, os seguidores de Conselheiro eram
"gente ínfima e suspeita, avessa ao trabalho... vencidos
da vida". Não estava sozinho nessas considerações. Ruy
Barbosa falava dos habitantes de Canudos como "idiotas e escravos de galés". Que o arraial preenchesse uma
necessidade na vida dos sertanejos pobres, desamparados, parecia-lhe secundário. Mas o fato é que em Canudos havia trabalho, inclusive para os negros e para os índios; havia uma escola; e havia um código de conduta:
álcool e prostituição eram proibidos.
As expressões usadas em relação aos sertanejos pretendiam ter fundamento científico. Partiam, como foi
dito, de um conceito fundamental, o de degenerescência: à medida que se sucedessem as gerações, nervosos
gerariam neuróticos, que gerariam psicóticos, que gerariam idiotas ou imbecis, até a extinção da linhagem. Tal
teoria foi sistematizada por Benedict Morel (1809-1873),
no seu "Tratado das Degenerescências", de 1857.
Já Henry Maudsley (1835-1918), psiquiatra inglês citado por Euclides na derradeira frase de "Os Sertões" ("É
que não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades..."), falava nas monomanias raciocinantes e nas monomanias instintivas, as primeiras
sendo conhecidas como loucura moral -outra expressão muito usada então.
Eugenia A teoria da degenerescência entrou na psiquiatria brasileira por meio de Nina Rodrigues e Juliano
Moreira. Nina Rodrigues dedicou-se a formular regras
para a avaliação de indivíduos considerados mentalmente doentes, decidir quanto a sua imputabilidade penal e, principalmente, a sugerir meios preventivos para
evitar a loucura e o crime.
Logo depois da tomada de Canudos, o presidente
Prudente de Morais (1894-98) sofreu um atentado, no
qual morreu o ministro da Guerra, marechal Carlos
Machado Bittencourt. O autor, o soldado Marcelino
Bispo de Melo, foi preso e, dois meses depois, se suicidou na cadeia. Nina Rodrigues analisou o crime, procurando demonstrar que o caso se enquadrava na teoria
da degenerescência: Marcelino Bispo era um degenerado violento, subcategoria regicida ou magnicida.
Nessa "prevenção" da degenerescência desempenhou
papel destacado a eugenia, a idéia do "aperfeiçoamento
racial". Baseado nessa idéia, o Terceiro Reich esterilizou
ou matou milhares de infelizes considerados "inferiores". No Brasil, a eugenia foi introduzida por meio da
Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), fundada em
1923 pelo psiquiatra Gustavo Riedel; em 1931 o psiquiatra Renato Kehl criou a Comissão Central Brasileira de
Eugenia, destinada a promover a "regeneração do homem". Os psiquiatras da LBHM não escondiam sua admiração pela Alemanha nazista; os Arquivos da Liga
deram grande ênfase à lei alemã de 1934, determinando
a esterilização compulsória dos portadores de "taras",
um termo tão usado quanto degenerescência.
Influenciado por essas idéias, Euclides seguramente
poderia ter evoluído para um racismo vulgar. Mas não
foi o que aconteceu. Ao longo de "Os Sertões", vamos
acompanhando a própria metamorfose do autor. Atacados, os sertanejos lutaram até o fim -e Euclides não
deixa de manifestar sua admiração por essa resistência,
bem como o seu horror pela violenta repressão. No livro, escrito depois da campanha, a famosa frase "O sertanejo é antes de tudo um forte" traduz o seu respeito
pelos humildes habitantes do sertão. Louco, o sertanejo? Inferior? Não. O sertanejo é, antes de tudo, um forte.
Ah, sim. Analisando o crânio de Antônio Conselheiro, Nina Rodrigues observou que, em se tratando de um
"mestiço", o morto era "muito suspeito de ser degenerado". Também notou que o morto quase não tinha
dentes. O que, provavelmente, foi, em seu laudo, a única
observação apoiada na realidade.
Moacyr Scliar é escritor e médico, autor de "A Paixão Transformada
-História da Medicina na Literatura" (Companhia das Letras).
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