São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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Lembrança de outro carnaval

José Murilo de Carvalho

Posse de Lula reinsere na cena política brasileira, em um contexto mais favorável à inclusão social, a retórica do "povo" consagrada por Getúlio Vargas

Bota o retrato do Velho outra vez, bota no mesmo lugar." O povo cantou essa marcha de Haroldo Lobo e Marino Pinto no Carnaval de 1951. O Velho era o ex-ditador Getúlio Vargas [que dirigiu o país de 1930 a 45 e, eleito democraticamente, entre 1951 e 54], recém-empossado na Presidência da República após grande vitória eleitoral sobre o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da União Democrática Nacional (UDN). Não seria fora de propósito cantar de novo a marchinha no Carnaval de 2003. Aliás, não fosse a barba, o próprio retrato de Lula, baixo, atarracado, um tanto descuidado no peso, amante de um bom charuto cubano, poderia bem substituir o do Velho. Mas o retrato do Velho de que falo não é o físico, mas o político.
Com tanta conversa sobre nova era para o país, sobre guinada histórica, sobre refundação do Brasil, uma referência ao passado pode parecer despropositada para muitos, sacrílega para os mais crentes. Nem tanto, nem tanto. Um historiador não observa os acontecimentos com microscópio. Ele os vê através das lentes de um binóculo, assestado ao mesmo tempo para o presente e para o passado. Talvez por vício de formação, desconfia de profecias sobre mudanças radicais, sobre rupturas drásticas. Continuidades existiram até nas grande revoluções, como a francesa e a russa. Como não existiriam em um país como o nosso, que nunca experimentou revolução? Entre nós, nem mesmo a abolição da escravatura trouxe grande abalo para a sociedade ou significou mudança radical na vida dos ex-escravos.
Mas, pode-se argumentar, falar em recolocar o retrato do Velho no lugar não é falar de continuidade, de persistência do passado, é falar de regresso, de volta ao passado. Esclareço logo que não falo de volta ao passado ou de repetição da história. A história nunca se repete.

É a vingança do Velhinho contra todos os inimigos seus, a direita golpista e ditatorial, a esquerda classista, o centro liberal-modernizante

Mas falo, sim, de uma conjuntura política e social em que a retórica das elites busca construir um agente político em moldes que lembram os da época do nacionalismo desenvolvimentista.
Esse agente é o povo, que agora volta à cena interpelado pela nova elite política representada por Lula e pelo PT (não confundamos as coisas: Lula e muitos petistas não pertencem à elite social e econômica do país, mas compõem hoje o topo da elite política).
Vargas foi o primeiro chefe de Estado e de governo a convocar o povo brasileiro para a cena política. Ele o fez na ditadura via legislação social e trabalhista; ele o fez no período democrático de seu governo via apelo à participação política. Interpelava sindicatos e trabalhadores. A categoria trabalhador extrapolava a classe operária e abrangia o povo como um todo. À medida que se aproximava do fim trágico, a referência ao povo dominou seu discurso. Na carta-testamento, afirmou ter voltado ao governo "nos braços do povo", e a esse mesmo povo oferecia a vida em holocausto, na certeza de que ele, povo, jamais seria, no futuro, escravo de ninguém.

A concepção de povo
A categoria povo foi mais bem elaborada nos anos seguintes, sobretudo pelos pensadores do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). A melhor formulação, a meu ver, foi a de Guerreiro Ramos [um dos sociólogos do Iseb, que foi fechado no Rio de Janeiro pelo golpe de 1964], que, no entanto, não discrepava muito das de Hélio Jaguaribe [sociólogo], Álvaro Vieira Pinto [1909-87, filósofo] e Nelson Werneck Sodré [1912-99, historiador e crítico literário].
O povo, segundo Guerreiro, era entidade que extrapolava as classes sociais. Formava-se por um corte vertical em nossa estratificação social. Incluía trabalhadores, sem dúvida, mas também camponeses, parcelas da classe média, da pequena burguesia, da intelectualidade, do empresariado. O povo era a grande coalizão de todos os que lutavam pela emancipação nacional. Ele era a nação que adquiria consciência de si mesma e, como tal, deveria ser o agente principal de nossa história.
O movimento emancipador caracterizava-se, desse modo, por transcender as classes, por ser nacionalista e coletivo, por ser de esquerda (transformador), por ser democrático e por ser protagonizado pelo povo.

A luta de classes em cena

Ao final do interregno de Juscelino Kubitschek, essa construção do ator político fundamental começou a ser desafiada, até mesmo dentro do próprio Iseb. A categoria povo começou a ser denunciada pela esquerda como desculpa para a cooperação de classe que era, por sua vez, mero disfarce para a continuação da dominação burguesa e para a abertura da economia ao imperialismo. A direita, sobretudo o udenismo e suas extensões nas Forças Armadas, denunciou o populismo varguista como máscara para encobrir a ação dos que pretendiam implantar no país a ditadura da classe operária.
O corte vertical da estratificação foi, então, substituído por corte horizontal, o povo foi substituído pela classe. Como consequência, a cooperação entre classes deu lugar ao conflito de classes, protagonizado pelo embate entre burguesia e proletariado; a nação fragmentou-se entre os que pretendiam corporificá-la; a democracia deixou de ser um valor.
A visão classista informou a luta política durante os anos da ditadura militar. Surgiram os movimentos guerrilheiros, se autoproclamando vanguarda da classe operária. Emergiu em São Paulo o novo movimento operário, sob a contundente liderança do jovem Lula, também em chave estritamente classista, denunciadora da tradição do sindicalismo e do populismo nacionalista de Vargas. A mesma linha foi seguida pelo PT e pelas Comunidades Eclesiais de Base.
Do lado oposto, a repressão por parte do governo militar justificava-se com a alegação de estar lutando contra a ameaça comunista. O povo desapareceu, exceto no breve apelo feito pelo nacionalismo da direita militar por ocasião da vitória na Copa de 1970 e nas mistificações da propaganda do regime.
Nos anos 80, foi dada outra volta ao parafuso histórico. No embalo da redemocratização, as classes recuaram para o fundo do palco e veio ao proscênio o cidadão como o novo protagonista político do país, produto da "Constituição cidadã" de 1988. O cidadão _ou a cidadania, como se tornou correto falar_ era o povo visto pelo viés dos direitos individuais, sobretudo dos direitos políticos. O cidadão era um reivindicador individual de direitos ('quero tudo a que tenho direito") no mercado político, em paralelismo com o consumidor no mercado econômico. Este cidadão-consumidor era um ser racional, era a modernidade, era o fim do nacionalismo emotivo e atrasado, era o encerramento definitivo do ciclo de Vargas.
Eis senão quando a história prega uma peça em todos. O Lula da "quarta campanha", mais maduro, mais sábio, menos anguloso, com o apoio da maioria de seu partido, deixa a classe e o sindicato em segundo plano e redescobre o povo brasileiro. No melhor estilo do pacto varguista, escolhe um empresário para seu vice e, logo após a eleição consagradora, "nos braços do povo", começa a falar em pacto nacional, em colaboração de classes, em inclusão social, em nação e nacionalismo. O velho povo e a nação voltam ao proscênio com força total.
O novo movimento parece muito perto da caracterização feita por Guerreiro Ramos. É a vingança do Velhinho contra todos os inimigos seus e de sua herança, a direita golpista e ditatorial, a esquerda classista, o centro liberal-modernizante. No retrato do novo presidente, que sobe ao poder nos braços do povo, fixando bem o olhar, será possível vislumbrar, em segundo plano, através da barba cada vez mais cuidada, o sorriso matreiro do Velho.

Sindicatos, associações e ONGs
Volta-se simplesmente ao passado? Não. Além da nova elite política do PT e do novo presidente saído do povo, há também um novo povo, já incorporado à democracia política via eleições, mais bem organizado em sindicatos, associações e organizações não-governamentais e, sobretudo, mais alerta e atuante como opinião pública nacional. São novidades importantes, que reduzem a probabilidade de volta ao populismo paternalista e manipulador, em benefício de um regime popular.
Lembre-se, no entanto, de que a população foi hoje novamente interpelada com êxito pela elite política como povo e nação, em preferência à classe e ao cidadão individual, pelo fato de ainda se achar, na maior parte, excluída socialmente como nos tempos de Vargas. A população organizada em sindicatos e protegida por essas organizações é pequena minoria, representa apenas 24% das pessoas economicamente ativas. Mais da metade dos trabalhadores brasileiros está excluída do setor formal da economia e fora da proteção das leis trabalhistas. Mais de três quartos (76%) dos 76 milhões de trabalhadores ganhavam em 2000 até dois salários mínimos. O apelo à classe não atinge essa população, o apelo ao cidadão não lhe basta. Toca-a e move-a a interpelação que lhe é feita em nome do povo, da nação e da inclusão social.
Mas a inclusão política, apenas prometida por Getúlio Vargas, dá, sim, hoje, ao povo armas para lutar pela inclusão social, que o Velho promoveu apenas parcialmente. Retomamos a retórica do Velho, com melhores condições de realizar seus sonhos. Velha história, novos horizontes.


José Murilo de Carvalho é professor titular do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de "A Escola de Minas de Ouro Preto" (ed. UFMG) e "Cidadania no Brasil" (ed. Civilização Brasileira), entre outros livros. Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.", do Mais!.


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