São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003 |
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República dos Silvas
Pela primeira vez as forças populares saem da marginalidade e podem marcar uma ruptura histórica com o passado colonial Laymert Garcia dos Santos A eleição de Lula e a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder devem configurar, sim, uma ruptura histórica, se a abertura de um possível A ruptura só não aparece com toda a nitidez porque até hoje continuam sendo acintosamente maquiados o desastre da política econômica neoliberal e a derrota fragorosa de FHC e do PSDB, em razão desse mesmo desastre. Fernando Henrique Cardoso entrega a seu sucessor um país assustadoramente devastado, como bem demonstrou Francisco de Oliveira Decadência das elites Um dia talvez nos apercebamos melhor de que, por trás da "finesse" de fachada, a era tucana foi uma época de grande decadência política, moral e intelectual das elites brasileiras. Quando _e se_ isso acontecer, poderemos avaliar melhor como a situação se degradou até se tornar intolerável para a maioria do povo brasileiro, que começou a apostar em suas próprias forças para sair do impasse e de uma agonia interminável. Numa chave tradicional da esquerda, é possível ver em Lula a vitória do metalúrgico, do operário e do sindicalista. Em meu entender, é mais do que isso: é a vitória de homens e de mulheres do povo elevados pela primeira vez à direção do país, não como "self-made men" destacados do povo e recebidos pelas elites, mas como parte e expressão efetiva desse mesmo povo, e com ele compromissado. Para perceber essa transformação inédita nas relações de poder que estão se esboçando, bastaria atentar para três sobrenomes que ocupam o primeiro plano do cenário político. Em vez das velhas figuras manjadas da oligarquia e da burguesia, os Silvas: Luiz Inácio Lula da Silva, Benedita da Silva [ex-governadora do RJ, deixou o cargo na última quarta-feira], Marina Silva [ex-senadora e atual ministra do Meio Ambiente]. O que compartilham, inscrito no nome comum, a cabocla amazonense, a negra carioca e o nordestino emigrado para o Sul, senão a matriz de um povo brasileiro que parece querer assumir as rédeas de seu próprio destino? A primeira grande ruptura é, portanto, com a dominação tradicional, que desde os tempos da colônia manteve o povo à margem da esfera da decisão política. Mas tal ruptura implica o abandono de uma subordinação multissecular que levava esse povo a dizer sempre amém às elites. Dito em poucas palavras: operou-se uma talvez imperceptível mudança _que não foi só na mentalidade, pois parece ter afetado a própria subjetividade_, e os brasileiros comuns deixaram de se ver como inferiores, passaram a achar que seus iguais poderiam e deveriam governar. De repente não era mais preciso ser "doutor" para ter autoridade... Ruptura histórica e ruptura subjetiva vão sempre juntas (o que não significa, evidentemente, que elas sejam definitivas: nunca se está livre de restaurações e de regressões). E é isso que estamos experimentando. Mas, imersos na angustiante e permanente viração a que a era FHC nos empurrou, mal ousamos pensar nisso e escapar do horizonte imediato. Assim, foi com surpresa que recebi, de um amigo filósofo, um exemplar de seu livro sobre Espinosa, com a dedicatória: "Ao feliz cidadão de um país onde boas notícias ainda podem acontecer!". Inversão do processo Um outro aspecto da dinâmica que se instaura e que merece consideração é a provável e possível valorização da coisa pública. Como todos sabem _e os cientistas sociais não se cansam de sublinhar_, no Brasil, desde os tempos da colônia, o público sempre foi objeto de apropriação privada. Por isso mesmo, a cidadania nunca chegou a existir plenamente, a lei só se aplicava para os "outros", e a corrupção e a impunidade campeavam. O governo Lula pode começar a virar também essa página e inverter o sentido do processo, não só moralizando o serviço público, mas também recuperando o que foi desmantelado, dignificando os funcionários que foram insistentemente desqualificados pela política anti-social do neoliberalismo, introduzindo em escala nacional o orçamento participativo, formulando políticas verdadeiramente públicas, que não se resumem à mera gestão do Estado segundo as prerrogativas e os interesses do mercado. Na frente externa, a mudança pode tomar a feição de uma inserção mais expressiva do Brasil na comunidade internacional e menos subserviente diante dos países do Norte; mas o mais importante é que o povo brasileiro vai deixar de "dar as costas" à América Latina, vai estabelecer laços solidários com os outros povos do continente e descobrir o que sempre lhe foi ocultado: nosso futuro comum. Por outro lado, e nesse mesmo sentido, a ruptura histórica que se dá no Brasil já se irradia e reverbera na Argentina, no Equador e em outros países, já atrai a atenção e acende esperanças. Finalmente, é preciso mencionar um acontecimento excepcional que se tem tentado recalcar de todas as maneiras possíveis: a derrota da mídia brasileira, grande eleitora do candidato tucano. De fato, pela primeira vez o poder de persuasão e de manipulação da opinião pública não surtiu efeito _nem mesmo o terrorismo econômico, criminosamente orquestrado e competentemente divulgado para criar o pânico, foi capaz de demover a população de seu propósito de mudar. Os eleitores não se deixaram intimidar: entre a ausência de perspectiva que caracterizava a proposta tucana, morte anunciada, e a afirmação da abertura de um possível, os brasileiros decidiram correr o risco. Laymert Garcia dos Santos é professor do departamento de sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Tempo de Ensaio" (Companhia das Letras). Texto Anterior: José Murilo de Carvalho: Lembrança de outro carnaval Próximo Texto: Alain Touraine: Integração crítica Índice |
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