São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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Itīs only MPB

Nicolau Sevcenko

Dólar elevado e retorno da inflação põem em choque cosmopolitismo consumista e princípio de realidade

Escrevo ainda com ressaca de adrenalina da vitória do Santos [de 3 a 2 sobre o Corinthians, em 15/12/2002]. Estou me lixando para a conquista do Campeonato Brasileiro, para os 18 anos [sem título] ou para o título inédito. O Santos poderia até perder que eu nem ligaria. Bastava que jogassem tão lindo quanto jogaram. Que recuperassem aquele estilo lúdico, irreverente, imaginativo, eufórico e extático que há muito desapareceu do futebol brasileiro e mundial. Um estilo que teve o seu clímax exatamente com o time do Santos do período heróico. O time que havia se tornado lenda e mito reencarnou nessa molecada até ontem desconhecida e menosprezada. Por um momento, o futebol voltou a ser uma arte de inspiração divina.
Digo um momento porque hoje em dia os times de futebol não permanecem mais com a formação básica inalterada ao longo de uma década, como acontecia outrora. Nesta era globalizada, cada atleta tem seu agente e segue o destino da sua cotação nas bolsas esportivas do mercado mundial. Só mesmo a inocência da juventude suscita a ilusão de que um time é uma comunidade fraternal de atletas e torcedores. E, no entanto, esse estado de graça existiu e se manifestou, ainda que por um breve momento. Tão breve e tão feliz.
Esse déjà vu nostálgico do Carnaval santista pode nos servir como um diapasão sensível, a fim de avaliar uma série de outras circunstâncias recentes, que nos deixam a estranha impressão de um filme a que já assistimos ou de experiências pelas quais já passamos. Há de fato no ar algo assim como a sensação de estarmos revisitando algumas encruzilhadas históricas, dispostos a tomar agora um atalho que havíamos evitado ou de refazer alguma trilha que tínhamos abandonado.
Vivemos um momento decisivo de mudanças e hesitamos entre nos lançar no futuro ou na busca do tempo perdido.
O quadro de estagnação da economia mundial, a falência do Consenso de Washington [série de medidas deliberadas em reunião na capital americana, em novembro de 1989, onde funcionários do governo dos EUA, dos organismos internacionais e economistas latino-americanos discutiram um conjunto de reformas neoliberais para a América Latina], a maquiagem dos balanços das grandes corporações, a manipulação do mercado de ações, a ruptura da bolha especulativa, as trocas na equipe do governo Bush, tudo aponta para um horizonte de mudanças que ainda não se configuraram com nitidez. No Brasil, o declínio da "utopia do possível" e o esgotamento da paradoxal e nefária "democracia de mercado" são sinais mais claros da necessidade premente de uma mudança de rumo, de mapa, de bússola, de nave e de piloto.

Paraísos artificiais
Assumida essa alteração de todo o sistema de navegação, algumas implicações parecem inevitáveis. Por exemplo, parece que alguma inflação e o real desvalorizado vieram para ficar por um bom tempo. A retração da inflação e o câmbio alto, agora se vê, eram manobras artificiosas, possibilitadas por uma conjuntura igualmente fictícia. Enquanto duraram, porém, elas tiveram um enorme impacto no imaginário e no comportamento de muitos brasileiros. Elas os habituaram às importações, às viagens e a um cosmopolitismo baseado no consumo de imagens, estilos e atitudes veiculadas na grande mídia internacional. Era o ímpeto de viver à grande os impulsos que movimentam a mecânica da sociedade do espetáculo.
Para esses contingentes, essa restrição do horizonte de circulação e consumo tenderia a ser sentida como um recuo penoso não só para as vacas magras, o que seria triste, embora tolerável, mas também para os açougues nacionais, o que soa como afronta. Outros, porém, cuja sensibilidade tende para o pólo oposto, veriam nessa limitação de horizontes um efeito saudável de reajustamento das perspectivas, forçando um retorno ao princípio de realidade e à consciência dos limites do país, como uma sociedade subdesenvolvida, subalterna, periférica e com tendências ao mimetismo cultural.
O confronto entre esses dois grupos poderia ser interpretado, metaforicamente, como uma consciência MPB contra uma atitude rock and roll. De novo um déjà vu, ainda mais se polarizado pela figura de Gilberto Gil. Mas seria uma vez mais uma redução equívoca de um quadro bem mais complexo.

Contaminações
O próprio Gil é um bom exemplo disso. Sua música representa práticas de fissão rítmica e fusão estilística, típicas de um tempo de ampliação de contatos, contaminações, transposições e assimilações calcados na capacidade ilimitada de transformação e homogeneização da indústria fonográfica. Gil mobiliza todo esse espantoso universo rítmico e musical da diáspora atlântica das culturas africanas, que coligou tradições ibéricas, celtas, árabes, ciganas, latino-americanas, italianas, pop e o que mais for, ensejando o conceito da "world music", simultaneamente local e universal, enraizada na origem e consumida por todo o mundo.
Outro aspecto da nova constelação política que pode dar a falsa impressão de um déjà vu diz respeito às relações internacionais. Diante das práticas protecionistas e pressões por parte dos Estados Unidos e da União Européia para a abertura do comércio brasileiro, cria-se um consenso de que o novo governo deve buscar alternativas a esses dois blocos superpoderosos. A idéia seria compor uma frente com outras economias de grande potencial, que carecem de alternativas para crescer.
Seria o caso de o Brasil e seus aliados latino-americanos se associarem com países tais como a África do Sul, a Índia, a China e a Rússia. O que traz à mente o velho bloco dos chamados países não-alinhados. Mas não estamos mais na Guerra Fria. Lula, com o prestígio internacional singular de que desfruta, poderia rediscutir os princípios que pautam a ordem globalizada.
Como se vê, a conjuntura é complexa e completamente nova. Ela porém só pode ser devidamente equacionada com um profundo senso histórico. Nossos problemas cruciais não surgiram com a globalização e o neoliberalismo, mas 500 anos atrás, com o colonialismo e a escravidão. Nossa fome de justiça começa ali. Nosso futuro é resolver esse passado.


Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura no departamento de história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autor de, entre outros livros, "Orfeu Extático na Metrópole" (Companhia das Letras).


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