São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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Ensaio aborda as disputas travadas entre intelectuais uspianos e concretistas

O partido das coisas

Evando Nascimento
especial para a Folha

O livro de Leda Tenório da Motta "Sobre a Crítica Literária Brasileira no Último Meio Século", lançado há pouco pela Imago, é um ótimo exercício de metacrítica, ou seja, de reflexão crítica sobre o trabalho de críticos literários. Com recurso a ampla erudição, a ensaísta reavalia a recepção das obras em seus lances teóricos e práticos, explorando inclusive as polêmicas entre escritores e críticos, bem como as dos críticos entre si, cujo caso paradigmático ocorre em São Paulo.
Leda Tenório busca uma dificílima linha de equilíbrio num território minado em que se digladiam, desde os anos 50, duas correntes: de um lado, o grupo constituído em torno de Antonio Candido na USP, tendo em Roberto Schwarz um ilustre representante; e, do outro, o chamado grupo concreto, nas figuras de Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari.
Em outras palavras, uma tendência que visa a explorar as relações entre literatura e sociedade, privilegiando os aspectos externos da obra literária, confrontada à inclinação estetizante dos concretistas. A revista "Clima"(16 números, entre 1941 e 1944) esteve ligada ao grupo homônimo, do qual Candido fez parte, ao passo que "Noigandres"(cinco números, entre 1952 e 1962) ajudou a divulgar as idéias da poesia concreta.

Ressensibilização
Embora ambicione a imparcialidade indispensável a quem está avaliando uma querela que a precede, a autora não escapa ao categórico imperativo de assumir um dos partidos, o dos Campos. Próximo ao meio do livro, ela declara: "Mas quer-nos parecer _tomando partido, o que é inevitável_ que a ênfase nas marcas da Linguística sobre a linguagem poética, já que temos aí fenômenos da mesma ordem, seria menos desnaturante (embora ainda assim um discurso justaposto) que a ênfase nas marcas externas".


Será que, após meio século de contendas, não há distanciamento histórico suficiente para concluir que estética e sociedade jamais devem se excluir?

Será que, após meio século de contendas, não há distanciamento histórico suficiente para concluir que estética e sociedade jamais devem se excluir, desde que se tome a primeira em seu valor mais radical e etimológico: aquilo que se relaciona aos sentidos e às sensações?
Retirando da antiga palavra estética o valor que a tradição lhe impôs, de culto ideal do belo, pode-se instrumentalizá-la para dar conta de uma ressensibilização geral dos sentidos, não colocando os sujeitos em êxtase paralisante, mas levando-os a refletir sobre o estatuto mesmo da obra que fruem, em articulação com o contexto cultural. Abre-se assim a possibilidade de um outro sublime, irredutível à pura transcendência.

Correntes complementares
Não acredito mesmo que, bem observadas, as duas correntes tenham-se entrincheirado numa atitude exclusiva. As questões estéticas em Haroldo e Augusto de Campos, por exemplo, foram objeto de reflexão sensível e, em última instância, cultural em relação à contemporaneidade. Em contrapartida, a abordagem sociológica, como Candido fez questão de ressaltar muitas vezes, não deve significar o predomínio do social sobre a obra, ao contrário, tudo parte do texto literário para em seguida dialogar com o entorno. Isso não impede, é claro, que se possa discordar eventualmente de uma ou outra idéia desses autores.
Quem se localiza em outras regiões do país, Rio de Janeiro, Bahia, Minas e demais Estados, pode apreciar com isenção essas produções críticas, as quais deram grandes contribuições aos estudos de literatura e de cultura em geral.
Além disso, deve-se assinalar que outros críticos não se alinham em princípio a nenhum dos partidos, tais como Luiz Costa Lima, João Alexandre Barbosa, Leyla Perrone-Moisés e Benedito Nunes.

Leitura plural
O melhor exemplo de ultrapassagem de conflitos está no belo capítulo final, em que a autora exercita diretamente a arte da crítica, lendo com acuidade o último livro de poesia de Haroldo de Campos, "A Máquina do Mundo Repensada" (ed. Ateliê). Com rigor e sensibilidade, ela expõe o modo como Haroldo combina perfeitamente no volume as conquistas da vanguarda com o metro clássico, inspirado em Dante e na epopéia camoniana. A leitura crítica pontua referências convergentes, citadas ou não pela obra (Homero, Virgílio, Montaigne, Baudelaire, Flaubert, Mallarmé, Valéry, Schwob, Jarry, Artaud, Borges, dentre outros), no sentido de expor a cosmogonia poética de Haroldo de Campos, em conexão com as pesquisas da astrofísica e com a máquina do mundo drummondiana.
Fica assim demonstrado que, na crítica como na arte, o segredo está em não se fixar numa posição única, explorando-se sem parti pris os elementos do repertório disponível, mas também inventando-se outros.

Evando Nascimento é professor de teoria da literatura e autor de "Ângulos - Literatura & Outras Artes" (Ed. da Universidade Federal de Juiz de Fora/ Ed. Argos) e "Derrida e a Literatura" (EdUFF).


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