São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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Porém, com a despolitização das religiões dominantes e a inclusão de minorias religiosas na comunidade política, o alargamento da tolerância religiosa, na qual reconhecemos uma espécie de precursor da democracia, torna-se também, no interior da democracia, o estimulador e o modelo da introdução de outros direitos culturais. O pluralismo religioso passa a despertar e a fecundar a sensibilidade para as reivindicações de outros grupos discriminados.
Naturalmente o debate sobre o multiculturalismo gira menos em torno da preterição de minorias religiosas do que da discriminação de outros grupos, por exemplo, em torno da definição de feriados nacionais, da regulação da(s) língua(s) oficial(ais), da promoção do ensino da língua materna para minorias étnicas ou nacionais, da regulação de cotas para mulheres e negros na política, no local de trabalho ou na universidade.

Criação de espaços
No entanto, sob o ponto de vista da inclusão simétrica de todos os cidadãos, a discriminação religiosa insere-se discretamente na série da discriminação cultural ou linguística, étnica ou racial, sexual ou de gênero. Frequentemente os limites chegam a desaparecer. A desaprovação do chamado do muezim [do árabe "muezzin", que designa aquele que, cinco vezes ao dia, chama, dos minaretes das mesquitas, os fiéis para rezar] em vilarejos onde os sinos da igreja continuam a conclamar para o culto é certamente um exemplo de discriminação; mas é também um bom exemplo da rejeição a imigrantes que um certo grupo realiza em sua auto-apresentação cultural ou um exemplo de como símbolos marcantes da identidade são excluídos politicamente da esfera pública.
O recuo ou o rechaço de uma religião dominante de sua fusão com o Estado e com a cultura política cria espaço para as liberdades por que lutam as minorias religiosas. Em seu litígio com o Estado de Baden-Wurttemberg, a candidata islâmica ao magistério insiste em usar o seu "lenço de cabeça" durante a aula em uma escola pública, já que ela acha que esse símbolo corresponde à cruz incontestada no colar de suas colegas.
Os testemunhas-de-jeová conquistaram no Tribunal Constitucional Federal o reconhecimento como entidade de direito público, equiparando-se assim às grandes confissões. Divergindo das regulações da proteção nacional aos animais, foi permitida a muçulmanos e judeus fiéis a práxis do abate ritual. Na Grã-Bretanha e nos EUA, os siques [adeptos do "siquismo", religião monoteísta fundada na Índia do século 16 pelo guru Nanak] conseguiram excetuar dos preceitos de segurança geralmente vigentes o uso de turbantes e o porte de punhais ("kirpans").
Esses casos mostram por que a liberdade religiosa tornou-se o modelo da introdução de outros direitos culturais. Estes também servem, como o livre exercício religioso, ao objetivo de garantir a todos cidadãos um acesso simétrico às formas de comunicação, às tradições e às práticas de uma comunidade que cada um considera necessárias para a formação e a preservação de sua identidade pessoal.
Para os membros de minorias raciais, nacionais, linguísticas ou étnicas, os meios e as possibilidades de reproduzir a própria linguagem e a própria forma de vida são com frequência tão importantes quanto o são para as minorias religiosas a liberdade de associação, a transmissão da doutrina religiosa e o exercício de seu culto. Por esse motivo, a luta pela igualdade de direitos entre as comunidades religiosas oferece, tanto na teoria política como na jurisprudência, argumentos e estímulos para a concepção de uma "cidadania multicultural" ampliada.

'Reconhecimento’
Convicções e práticas religiosas possuíram em todas as culturas uma influência marcante sobre a autocompreensão ética do indivíduo. Mas as tradições linguísticas e culturais não são menos relevantes para a formação e a preservação da identidade pessoal de indivíduos socializados, sempre entretecida com as identidades coletivas. Esse reconhecimento obriga a uma ampliação intersubjetivista do conceito abstrato de "pessoa jurídica". Visto que a individuação das pessoas naturais se efetua pela via da socialização, sua identidade e por consequência também a integridade de uma pessoa jurídica só pode ser protegida se for garantido o acesso aos contextos de experiência, de comunicação e de reconhecimento nos quais cada um pode adquirir e estabilizar a própria identidade, expressar sua autocompreensão e seguir seu projeto de vida.
Os direitos culturais, exigidos e introduzidos sob o signo de uma "política do reconhecimento", não devem ser entendidos como direitos de coletividades.
Segundo o modelo da liberdade religiosa negativa, trata-se antes de direitos subjetivos, que devem assegurar uma inclusão completa de todas as pessoas ainda tão pressionadas para a margem. Eles garantem a todos os cidadãos o acesso simétrico a ambientes culturais, relações interpessoais e tradições, à medida que estas são essenciais para a formação e a preservação de sua identidade pessoal.

A luta pela igualdade de direitos entre as comunidades religiosas oferece argumentos e estímulos para a concepção de uma "cidadania multicultural"

Certamente, os grupos discriminados não alcançam de modo geral a fruição de direitos culturais iguais "sem pagar um preço". Pois eles têm de se apropriar por sua parte do princípio da inclusão dos cidadãos. Para isso não há impedimento em grupos recenseados como mulheres, homossexuais ou deficientes.
Aqui a característica formadora dos grupos e determinante para a discriminação não está ligada a tradições constitutivas talvez avultadas.
Apenas comunidades "fortes" (como as minorias nacionais ou étnicas, as subculturas de imigrantes, autóctones ou descendentes de culturas escravistas etc.) são marcadas por tradições comuns e formam identidades coletivas próprias.
Para esses, em casos de "não-simultaneidade histórica", a conexão cognitiva necessária do ethos interno com a moral dos direitos humanos do ambiente social e político pode ser mais difícil que para comunidades religiosas, capazes de hauri-la dos recursos conceituais altamente desenvolvidos de uma das grandes religiões universais.

Cultura e política
Um multiculturalismo, desde que bem entendido, não constitui uma rua de mão única para a auto-afirmação de grupos com identidade própria. A coexistência em pé de igualdade de diversas formas de vida exige ao mesmo tempo uma integração dos cidadãos e o reconhecimento recíproco de sua qualidade de membro subcultural no quadro de uma cultura política comum. A sociedade pluralista democraticamente constituída garante as diferenciações culturais sob a condição da integração política.
Os cidadãos da sociedade são autorizados a formar seu modo cultural próprio sob a pressuposição de que eles se entendam, juntos com todos os outros, e por assim dizer para além dos limites subculturais, como cidadãos da mesma coletividade política. As justificações e as autorizações culturais encontram seus limites nas bases normativas da Constituição, unicamente a partir da qual eles se fundamentam. Para o pai que gostaria de liberar sua filha da participação na educação física de uma escola pública ou privar o filho de um tratamento médico salvador, não basta apelar à liberdade religiosa, pois essas práticas interfeririam nos direitos fundamentais de pessoas dependentes.

Tradução de Luiz Repa.


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