São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Enquanto a tolerância religiosa é um precursor do Estado constitucional democrático, a própria consciência religiosa tem de se sujeitar por esse caminho a um processo de aprendizado. Com a introdução do direito fundamental ao livre exercício da religião, as comunidades religiosas se apropriam do critério da inclusão completa de todos os cidadãos, partindo de sua própria perspectiva.
Elas não só estão autorizadas a fazer uso da tolerância dos outros, como também precisam por sua vez se colocar exigências de tolerância com todas as consequências. O Estado liberal espera que a consciência religiosa dos fiéis se modernize no curso de uma adaptação cognitiva ao recorte individualista das leis da sociedade secular, fundamentadas de maneira universalista.
Toda religião é originariamente "imagem de mundo" ou, como diz John Rawls [1921-2002, filósofo americano, autor de "Uma Teoria da Justiça"], "comprehensive doctrine", também no sentido de que ela reivindica a autoridade para estruturar uma forma de vida em seu todo. A essa pretensão de uma configuração abrangente da vida deve renunciar uma religião que se resigna a ser uma confissão entre várias outras.
Pois, sob as condições do pluralismo de visões de mundo, a vida da comunidade religiosa tem de se diferenciar da vida social da coletividade política maior. Uma religião "dominante" perde sua força de configuração política quando a ordem política não obedece mais enquanto tal ao ethos religioso. Isso tem por consequência, entre outras coisas, a renúncia à violência e a aceitação da voluntariedade na comunitarização religiosa. Para a realização das pretensões da fé tanto na esfera interna como na externa, não se pode pretender o uso da violência.

Pressão para a despolitização
As doutrinas religiosas, que haviam colocado à disposição do Estado os fundamentos sacros de sua legitimação, assimilam a pressão para a despolitização ao redefinir, a partir de sua perspectiva interna, a relação da comunidade religiosa (a) com o Estado liberal, (b) com outras comunidades religiosas e (c) com a sociedade secularizada como um todo.
(a) Para ilustrar a "acomodação" da moral dos direitos humanos no interior de diversas imagens religiosas do mundo, John Rawls escolheu a figura de um "módulo" que, embora construído somente com razões neutras quanto às visões de mundo, pode caber nos contextos da fundamentação ortodoxa. Em relação à idéia de uma religião da razão, que acolhe em si uma substância moral comum a todas as doutrinas religiosas, essa concepção tem a vantagem de não negar aos poderes da fé a seriedade das pretensões à verdade absoluta e de minorar assim o sentido radical da tolerância.
(b) As doutrinas missionárias como o cristianismo ou o islã mantêm com os heterodoxos, por princípio, uma relação de intolerância. O amor ao próximo inclui o cuidado ativo com a salvação de sua alma. E visto que, como argumenta Tomás de Aquino, por exemplo, a salvação eterna goza de primazia sobre todos os outros bens, o cuidado com a salvação não exclui o emprego de violência com o objetivo da conversão para a fé correta ou com o objetivo da proteção contra a heresia. A adaptação dogmática à tolerância precisa então ou contestar as premissas da danação eterna que ameaça os infiéis ou defender o argumento de que a fé correta não pode ser forçada ou levar a campo um falibilismo que se preserva do dogmatismo seguro de si ou recorrer a argumentos de qualquer modo equivalentes.

Enquanto a tolerância religiosa é um precursor do Estado constitucional democrático, a própria consciência religiosa tem de se sujeitar por esse caminho a um processo de aprendizado.

(c) O essencial da tolerância religiosa consiste em que ela busca mitigar a destrutividade social de um dissenso que perdura de maneira irreconciliável. Este não deve rasgar o laço social que vincula os fiéis aos heterodoxos e aos infiéis na qualidade de membros da mesma sociedade secular. A tolerância recíproca para com a fé alheia, recusada de maneira descomprometida, requer no plano social uma diferenciação de papéis entre o membro da comunidade e o cidadão da sociedade, a qual tem de ser fundamentada convincentemente da perspectiva da própria religião, se é que os conflitos de lealdade estruturalmente enraizados não devam continuar a arder.
Uma diferenciação não-conflituosa das duas maneiras de ser membro não se esgota na adaptação, despretensiosa em termos cognitivos, do ethos religioso às leis da sociedade secular. Ela requer que a moral da sociedade estabelecida na constituição democrática se diferencie cognitivamente do ethos da comunidade.
A reorganização cognitiva da doutrina e da mentalidade das grandes comunidades religiosas não está ainda de modo algum encerrada, mesmo no Ocidente. É o que nos mostram por exemplo as reações alarmistas que o assim chamado "julgamento do crucifixo" do Tribunal Constitucional Federal [ocorrido na Alemanha em 1995] desencadeou.
Como se sabe, o tribunal havia declarado que era contrária à Constituição a determinação da ordem escolar da Baviera que transforma em dever a fixação de crucifixos nas salas de aula das escolas públicas; ela feriria o princípio da neutralidade do Estado em questões de fé e contradiria a liberdade religiosa, tanto a liberdade positiva "de viver segundo suas próprias convicções" como, especialmente, a liberdade negativa "de manter-se distante dos atos cultuais de uma fé não partilhada".
Enquanto o tribunal apelava à paridade das igrejas e das confissões assegurada por direitos fundamentais, os juízes dissidentes e os adversários políticos fundamentavam sua crítica com o argumento de que a cruz nas salas de aula bávaras não seria um signo específico de conteúdos da fé cristã, mas um elemento integrante da cultura ocidental. Nessas reações, expressa-se a recusa de distinguir as convicções axiológicas éticas, próprias de uma comunidade religiosa, do espaço de validade dos princípios jurídicos e morais que definem a convivência na sociedade secular em seu todo.

Resumindo, pode-se constatar que o nexo entre a tolerância religiosa e a democracia se torna acessível a nós por dois lados: pelo lado da política, que ajusta seu fundamento legitimador a um pluralismo de visões de mundo, e pelo lado da religião, que liga as leis da sociedade secular ao seu próprio ethos
continua...



Texto Anterior: Teoria da adaptação
Próximo Texto: ...continuação
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.