São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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O recado das urnas

Voltaire de Souza

As eleições são uma festa da democracia.
Silvano não concordava muito com isso.
- Aporrinhação. Mesário. Mais uma vez.
O rapaz era sério e responsável. O despertador tocou antes das cinco. Modelo eletrônico de qualidade bastante boa. Regulado para acordar Silvano com sua música preferida. O tema do seriado "Havaí 5-0".
- Parará-tâ-rããhn-tâ. É a encheção.
A zona eleitoral estava localizada numa das mais precárias instituições de ensino superior da zona leste da capital paulista. As Faculdades Reunidas Professor Pintassilgo.
- Monte de maloqueiro. Maconha rolando. E eu lá. Para garantir a ordem. Pode?
Silvano chegou ao estabelecimento com a alma cheia de incompreensão e preconceito.
- Deixa eu ver essa urna eletrônica.
Notou uma abertura suspeita no rack do aparelho.
- Aqui tem treta.
Era um pacotinho meio rasgado. Algumas doses de haxixe que o aluno e microtraficante Corveta tinha escondido ali. Partículas da droga se espalhavam em volta da urna.
- Droga pesada. Que absurdo. Sujando tudo aqui.
Silvano resolveu verificar com cuidado as condições do aparelho democrático.
- Apertando aqui... salta um candidato...
A tela se iluminou. Mas não apareceu nenhum presidenciável.
E sim a imagem do Fernandinho Beira-Mar. Deixando o seu recado pessoal.
- Ordem. Mais segurança para o meu povo. Fé no movimento. Porra.
Silvano levou um susto. Apertou outra tecla. Surgiu a imagem do Bush.
- Not vote. Bomb yes, brother.
Fumaça começou a sair da urna viciada. O medo de Silvano tornou-se crescente. Tentou apertar a tecla anula. Um rosto apareceu à sua frente. O rosto pálido. Magro. Sobrancelhas negras e curvas. Olhos profundos e febris. Panos brancos em volta da cabeça.
- Osama? You? Não é possível.
Trêmulo, Silvano deu alguns pés-de-ouvido naquela imagem sinistra.
A música do "Havaí 5-0" começou a tocar como um hino de vitória democrática.
Mas não era o Osama. Era a mulher dele, Janaína. Que levantava a cabeça do travesseiro e reagiu com mau humor ao ataque físico de Silvano.
- Panaca. Não sei como chamaram para mesário um imbecil feito você. Levanta, que você está atrasado.
A democracia pode ser um sonho. Para que não se transforme em pesadelo, é preciso ficar de olhos bem abertos.


Voltaire de Souza é jornalista. Mantém uma coluna de crônica diária no jornal "Agora SP".


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