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O recado das urnas
Voltaire de Souza
As eleições são uma festa da democracia.
Silvano não concordava muito com isso.
- Aporrinhação. Mesário. Mais uma vez.
O rapaz era sério e responsável. O despertador tocou antes das cinco. Modelo eletrônico de qualidade bastante boa. Regulado para acordar Silvano com
sua música preferida. O tema do seriado "Havaí 5-0".
- Parará-tâ-rããhn-tâ. É a encheção.
A zona eleitoral estava localizada numa das mais precárias instituições de ensino superior da zona leste da
capital paulista. As Faculdades Reunidas Professor Pintassilgo.
- Monte de maloqueiro. Maconha rolando. E eu lá.
Para garantir a ordem. Pode?
Silvano chegou ao estabelecimento com a alma cheia
de incompreensão e preconceito.
- Deixa eu ver essa urna eletrônica.
Notou uma abertura suspeita no rack do aparelho.
- Aqui tem treta.
Era um pacotinho meio rasgado. Algumas doses de
haxixe que o aluno e microtraficante Corveta tinha escondido ali. Partículas da droga se espalhavam em volta
da urna.
- Droga pesada. Que absurdo. Sujando tudo aqui.
Silvano resolveu verificar com cuidado as condições
do aparelho democrático.
- Apertando aqui... salta um candidato...
A tela se iluminou. Mas não apareceu nenhum presidenciável.
E sim a imagem do Fernandinho Beira-Mar. Deixando o seu recado pessoal.
- Ordem. Mais segurança para o meu povo. Fé no
movimento. Porra.
Silvano levou um susto. Apertou outra tecla. Surgiu a
imagem do Bush.
- Not vote. Bomb yes, brother.
Fumaça começou a sair da urna viciada. O medo de
Silvano tornou-se crescente. Tentou apertar a tecla anula. Um rosto apareceu à sua frente. O rosto pálido. Magro. Sobrancelhas negras e curvas. Olhos profundos e
febris. Panos brancos em volta da cabeça.
- Osama? You? Não é possível.
Trêmulo, Silvano deu alguns pés-de-ouvido naquela
imagem sinistra.
A música do "Havaí 5-0" começou a tocar como um
hino de vitória democrática.
Mas não era o Osama. Era a mulher dele, Janaína. Que
levantava a cabeça do travesseiro e reagiu com mau humor ao ataque físico de Silvano.
- Panaca. Não sei como chamaram para mesário um
imbecil feito você. Levanta, que você está atrasado.
A democracia pode ser um sonho. Para que não se
transforme em pesadelo, é preciso ficar de olhos bem
abertos.
Voltaire de Souza é jornalista. Mantém uma coluna de crônica diária
no jornal "Agora SP".
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