São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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Se Hamlet fosse masário

Jô Soares

Ser ou não ser mesário, eis a questão. Seguir o mar de votos novamente e cumprir o meu dever de cidadão, sentado, com o traseiro paciente, até que se termine esta eleição ou furtar-me da tarefa, simplesmente, preparando um atestado de antemão? É grave eu alegar que estou doente com dengue, antraz e mancha no pulmão? Será mais nobre desistir agora e, ao desistir, contando a vil lorota, correr o risco, pela vida afora, de ser chamado de antipatriota? Preencher, sorriso alvar nos lábios, o nome do eleitor nos alfarrábios e orientar seu voto inviolável numa cabine dita indevassável ou alegar uma bronquite crônica para escapar da cédula eletrônica? Morrer, dormir, sonhar talvez, quem sabe? Aguardando o final da apuração e neste sonho, ao menos, ter certeza de não sofrer nenhuma punição. Mas, se no sonho, que é descontrolado, eu for, por um colega, derrubado? Anátema! Que horror! Que desmazelo! É o sonho transformado em pesadelo! Calma, não há por que ficar tão tenso, trata-se apenas do primeiro turno. Relaxa, raciocina, usa o bom senso, afasta do teu sono o horror noturno! Mas, e se algum fiscal mexeriqueiro, carrancudo, cruel, censor rapace, descobrisse a minha burla no primeiro, e no segundo turno se vingasse? Qual predador faminto ele olha a presa, vigia a urna, atento a cada instante, até que se debruça sobre a mesa antecipando o gozo do flagrante. Saca do bolso a confissão firmada do meu contraventor facultativo: a burla foi, enfim, desmascarada. Ó céus! perdi meu justificativo. Mesário impenitente e prima-dona! Seria então melhor ter trabalhado numa cadeira dura lá na zona deixando meu "derrière" dilacerado? Meu Deus, que sofrimento em cada pleito! A dúvida a dilacerar-me o peito. Por que, em vez de sempre ser mesário, sofrendo toda vez este calvário, eu não concorro logo à eleição? Mas, se não for eleito, o que me sobra? A angústia dessa indecisão redobra e não se delineia a solução. Ser ou não ser mesário, eis a questão.


Jô Soares é apresentador de TV e escritor, autor de, entre outros, "O Homem Que Matou Getúlio Vargas" (Companhia das Letras).

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