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Se Hamlet fosse masário
Jô Soares
Ser ou não ser mesário, eis a questão.
Seguir o mar de votos novamente
e cumprir o meu dever de cidadão,
sentado, com o traseiro paciente,
até que se termine esta eleição
ou furtar-me da tarefa, simplesmente,
preparando um atestado de antemão?
É grave eu alegar que estou doente
com dengue, antraz e mancha no pulmão?
Será mais nobre desistir agora
e, ao desistir, contando a vil lorota,
correr o risco, pela vida afora,
de ser chamado de antipatriota?
Preencher, sorriso alvar nos lábios,
o nome do eleitor nos alfarrábios
e orientar seu voto inviolável
numa cabine dita indevassável
ou alegar uma bronquite crônica
para escapar da cédula eletrônica?
Morrer, dormir, sonhar talvez, quem sabe?
Aguardando o final da apuração
e neste sonho, ao menos, ter certeza
de não sofrer nenhuma punição.
Mas, se no sonho, que é descontrolado,
eu for, por um colega, derrubado?
Anátema! Que horror! Que desmazelo!
É o sonho transformado em pesadelo!
Calma, não há por que ficar tão tenso,
trata-se apenas do primeiro turno.
Relaxa, raciocina, usa o bom senso,
afasta do teu sono o horror noturno!
Mas, e se algum fiscal mexeriqueiro,
carrancudo, cruel, censor rapace,
descobrisse a minha burla no primeiro,
e no segundo turno se vingasse?
Qual predador faminto ele olha a presa,
vigia a urna, atento a cada instante,
até que se debruça sobre a mesa
antecipando o gozo do flagrante.
Saca do bolso a confissão firmada
do meu contraventor facultativo:
a burla foi, enfim, desmascarada.
Ó céus! perdi meu justificativo.
Mesário impenitente e prima-dona!
Seria então melhor ter trabalhado
numa cadeira dura lá na zona
deixando meu "derrière" dilacerado?
Meu Deus, que sofrimento em cada pleito!
A dúvida a dilacerar-me o peito.
Por que, em vez de sempre ser mesário,
sofrendo toda vez este calvário,
eu não concorro logo à eleição?
Mas, se não for eleito, o que me sobra?
A angústia dessa indecisão redobra
e não se delineia a solução.
Ser ou não ser mesário, eis a questão.
Jô Soares é apresentador de TV e escritor, autor de, entre outros, "O
Homem Que Matou Getúlio Vargas" (Companhia das Letras).
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