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+ arte
Exposição na Pinacoteca de SP traz, a partir do dia 16, 50 pinturas de Fábio Miguez
UMA CELEBRAÇÃO INVERNAL DA VIDA
Nuno Ramos
especial para a Folha
Talvez seja a tarefa das pinturas de
Fábio Miguez [em exposição na
Pinacoteca de SP (tel. 0/xx/11/229-9844) a partir do próximo sábado]
manter a pintura boiando em sua potência, como um bicho que hiberna e armazena energia enquanto dura o inverno.
Algo aqui parece reduzido a uma intensidade mínima, mas onde uma vida inteira
está guardada. Gosto de pensar em De
Kooning como a natureza dessa vida, sua
fonte mais profunda, seu princípio sempre renovado.
Pois em nenhum outro pintor moderno a pintura celebrou com tanta força o
poder de seu instante, o arrastar da tinta
para lá e para cá, o branco que não se sabe bem de onde brota, mas que segue
brotando o tempo todo, iluminando por
igual, como uma tarde fria de junho, tudo o que a pincelada conduz. É isso o que
está guardado nestas telas de Fábio Miguez -uma espécie de celebração invernal da vida (e da pintura), que recomeça.
Não sei se exagero, mas considero "Deriva" (um conjunto de fotografias tiradas
em Ubatuba, em 1993-94) o momento
fundamental para a constituição desse
ponto de vista e uma espécie de guia poético para percorrê-lo. Trata-se de uma
dezena de pares de fotos em preto-e-branco, emoldurados conjuntamente. À
esquerda, ondas estouram contra as pedras, produzindo diferentes tapeçarias
de espuma (um pouco como aquela cena
do naufrágio em "Limite", de Mário Peixoto); à direita, a neblina engole o mar,
ilhas ou montanhas, em graus diferentes
de opacidade e espessura.
Cada foto pertence a uma série diversa
em sua monotonia. Dois ritmos diferentes são postos lado a lado -o batimento
da onda e o abraço lento da chuva e da
bruma. Embora tudo esteja se movendo,
não há movimento aqui; tudo se modifica, mas parece fixo, constante. O lugar,
dado pelo recorte das fotos, embora feito
de espuma, de vapor e de gás, acaba ganhando uma fixidez quase geológica. A
sobreposição do que é fluido e passageiro não produz variação; não produz talvez propriamente um ritmo, mas pausa e
intervalo, fixando a nuvem e prendendo
a espuma.
Há uma garantia de fundo que essas fotos parecem oferecer, um arrimo de que
as coisas mais fugidias permanecem, esperam por nós, de que o pintor poderá
sempre se dirigir a elas, ao rastro delas, à
sombra delas, com confiança e serenidade. E, uma vez garantido isso, será possível então fazer o movimento contrário:
esgarçá-las, torná-las transparentes, fazê-las quase sumir. Para quem vai chegar
tão perto de perder o mundo, é preciso
antes assegurar-se de que ele continua lá
-acho que, em sua misteriosa simplicidade, é isso o que essas fotos fazem.
Então os elementos da pintura podem
se expor sem medo, sem que (como nas
telas mais antigas de Fábio Miguez) tenham de contar o largo trajeto de seu
nascimento, estendendo assim sua deriva à terra firme. Parecem, justamente, ter
saído de um elemento aquático que os
atravessava e unia para a nitidez que
têm as coisas expostas ao sol. É ao sol
que nas pinturas mais recentes eles se
mostram, sem a capa líquida que os
protegia e refratava.
São nítidos. São lúcidos. Parecem
prontos para deixar a placenta onde
dormiam. Andam para lá e para cá, ensaiando alguns passos. Ficam pequeninos na paisagem. Encontram um pedaço de funil. Um caco de espelho. Veja:
uma lamparina. Caminham de volta até
nós, carregando o que encontraram.
Não é que andem em grupo, mas sabem da presença uns dos outros. Não é
que sejam feitos de matéria mole, mas
podem sobrepor-se, fundindo-se parcialmente. São opacos, mas um pouco
da transparência desse lugar os inunda
e atravessa. Bóiam. Brilham sob um sol
que vem de fora, mas que atende aos
desejos deles. Brincam de mandar no
sol. De fato, mandam nele.
Nuno Ramos é artista plástico e escritor, autor
de "Cujo" e "O Pão do Corvo" (ed. 34).
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