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São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

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+ arte

Exposição na Pinacoteca de SP traz, a partir do dia 16, 50 pinturas de Fábio Miguez

UMA CELEBRAÇÃO INVERNAL DA VIDA

Nuno Ramos
especial para a Folha

Talvez seja a tarefa das pinturas de Fábio Miguez [em exposição na Pinacoteca de SP (tel. 0/xx/11/229-9844) a partir do próximo sábado] manter a pintura boiando em sua potência, como um bicho que hiberna e armazena energia enquanto dura o inverno. Algo aqui parece reduzido a uma intensidade mínima, mas onde uma vida inteira está guardada. Gosto de pensar em De Kooning como a natureza dessa vida, sua fonte mais profunda, seu princípio sempre renovado.
Pois em nenhum outro pintor moderno a pintura celebrou com tanta força o poder de seu instante, o arrastar da tinta para lá e para cá, o branco que não se sabe bem de onde brota, mas que segue brotando o tempo todo, iluminando por igual, como uma tarde fria de junho, tudo o que a pincelada conduz. É isso o que está guardado nestas telas de Fábio Miguez -uma espécie de celebração invernal da vida (e da pintura), que recomeça.
Não sei se exagero, mas considero "Deriva" (um conjunto de fotografias tiradas em Ubatuba, em 1993-94) o momento fundamental para a constituição desse ponto de vista e uma espécie de guia poético para percorrê-lo. Trata-se de uma dezena de pares de fotos em preto-e-branco, emoldurados conjuntamente. À esquerda, ondas estouram contra as pedras, produzindo diferentes tapeçarias de espuma (um pouco como aquela cena do naufrágio em "Limite", de Mário Peixoto); à direita, a neblina engole o mar, ilhas ou montanhas, em graus diferentes de opacidade e espessura.
Cada foto pertence a uma série diversa em sua monotonia. Dois ritmos diferentes são postos lado a lado -o batimento da onda e o abraço lento da chuva e da bruma. Embora tudo esteja se movendo, não há movimento aqui; tudo se modifica, mas parece fixo, constante. O lugar, dado pelo recorte das fotos, embora feito de espuma, de vapor e de gás, acaba ganhando uma fixidez quase geológica. A sobreposição do que é fluido e passageiro não produz variação; não produz talvez propriamente um ritmo, mas pausa e intervalo, fixando a nuvem e prendendo a espuma.
Há uma garantia de fundo que essas fotos parecem oferecer, um arrimo de que as coisas mais fugidias permanecem, esperam por nós, de que o pintor poderá sempre se dirigir a elas, ao rastro delas, à sombra delas, com confiança e serenidade. E, uma vez garantido isso, será possível então fazer o movimento contrário: esgarçá-las, torná-las transparentes, fazê-las quase sumir. Para quem vai chegar tão perto de perder o mundo, é preciso antes assegurar-se de que ele continua lá -acho que, em sua misteriosa simplicidade, é isso o que essas fotos fazem.
Então os elementos da pintura podem se expor sem medo, sem que (como nas telas mais antigas de Fábio Miguez) tenham de contar o largo trajeto de seu nascimento, estendendo assim sua deriva à terra firme. Parecem, justamente, ter saído de um elemento aquático que os atravessava e unia para a nitidez que têm as coisas expostas ao sol. É ao sol que nas pinturas mais recentes eles se mostram, sem a capa líquida que os protegia e refratava.
São nítidos. São lúcidos. Parecem prontos para deixar a placenta onde dormiam. Andam para lá e para cá, ensaiando alguns passos. Ficam pequeninos na paisagem. Encontram um pedaço de funil. Um caco de espelho. Veja: uma lamparina. Caminham de volta até nós, carregando o que encontraram. Não é que andem em grupo, mas sabem da presença uns dos outros. Não é que sejam feitos de matéria mole, mas podem sobrepor-se, fundindo-se parcialmente. São opacos, mas um pouco da transparência desse lugar os inunda e atravessa. Bóiam. Brilham sob um sol que vem de fora, mas que atende aos desejos deles. Brincam de mandar no sol. De fato, mandam nele.


Nuno Ramos é artista plástico e escritor, autor de "Cujo" e "O Pão do Corvo" (ed. 34).


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