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São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

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ENSAÍSTA DISCUTE A VIDA SEXUAL EM NOVA YORK APÓS O ATENTADO DE 11 DE SETEMBRO E A COMPARA COM A DOS ANOS 60 E 70 PARA MOSTRAR COMO ELA SOBREVIVE ATUALMENTE COMO ESPETÁCULO OU ATRAÇÃO TURÍSTICA

O SEXO NA CIDADE

Leather Archives and Museum
Cena do clube gay sadomasoquista The Mineshaft, nos anos 70


Por Contardo Calligaris

No ano passado, a imprensa (americana e não) produziu uma série de matérias sobre o sexo em Nova York. A intenção era verificar e comentar as eventuais mudanças no comportamento sexual dos nova-iorquinos depois do atentado de 11 de setembro de 2001. O pretexto era, segundo a data dos artigos, a preparação ou a inauguração do Museu do Sexo, que aconteceu em outubro de 2002 (o museu está na Quinta Avenida com a rua 27; a visita é divertida; o ingresso é um pouco caro, US$ 14,50). A série começou com um especial do "Village Voice" (26/6/2001), em que vários articulistas tentavam mostrar que "Sodoma e Gomorra sobre o Hudson", a Nova York mais "pecaminosa" e sobretudo gay, estava funcionando a pleno vapor, como nos velhos tempos (melhor, ou quase, do que na época dourada, antes da epidemia de Aids). Essa descrição inicial deu o tom. Desfilaram os evolucionistas afirmando que, no interesse da espécie, quando uma sociedade perde um lote de seus membros numa catástrofe como a de 11 de setembro, a testosterona salva o dia e compensa as perdas forçando todos a transarem alegremente. E apareceram os psicólogos de domingo, salientando que a orgia é uma maneira "normal" de afastar a tristeza, uma espécie de Carnaval depois da Quaresma. Nessa época, fui convidado pelo Mais! a fazer a minha descrição. Antes de me pronunciar, quis andar pelos porões da cidade e compará-los com os da Nova York em que passei bastante tempo no fim dos anos 60 e em vários momentos dos 70. As notas que seguem são alguns resultados dos passeios e das comparações. Digo logo: minhas impressões são diferentes das considerações festivas dos articulistas do ano passado. O atentado de 11 de setembro produziu, é claro, um breve tempo de luto (durante 20 dias, a gente mal saía para ir ao cinema), mas não alterou substancialmente a vida sexual de Nova York. Fora isso, Sodoma e Gomorra sobre o Hudson (assim como as outras capitais sexuais do mundo desenvolvido) está cansada. Essa mudança, que ocorreu ao longo dos últimos 30 anos, é resumida pelo evento que serviu de pretexto para a série de artigos de 2002: a abertura do Museu do Sexo. Entendo assim: a vida sexual de Nova York virou museu, sobrevive como espetáculo, se não como atração turística.

Sexo inter-racial
No fim dos anos 60, nos EUA, a tensão racial era intensa (só para lembrar, Martin Luther King foi assassinado em 1968). Assisti à peça "Dutchman", de Leroy Jones (que mais tarde seria um dos ideólogos da Nação Negra), em 66 ou 67, numa montagem quase caseira, no Greenwich Village de Nova York. A peça era (e ainda é) um tratado sobre a tropa de fantasias sexuais que sempre acompanhou a tensão racial, nos EUA e em muitos outros países que foram escravagistas ou colonialistas. A ação acontece num vagão de metrô, onde Lula, uma mulher branca, encontra Clay, um negro de classe média e integrado. Lula provoca Clay sexualmente e recebe uma resposta à altura: "Estou aqui sentado com o meu terninho abotoado só para não cortar a garganta de vocês todos. Sua grande puta liberada! Trepa com quatro negros e pensa que é especialista em raça negra. Que monte de merda". No fim da peça, Lula mata Clay com uma facada, e os passageiros se desfazem do corpo.
Naquele teatrinho confidencial de Nova York, a atmosfera era espessa, carregada de uma violência que era, ao mesmo tempo, social e sexual. Se eu e uma amiga (os únicos brancos na platéia) não estivéssemos em companhia de amigos negros e militantes, provavelmente teríamos saído de fininho antes do fim, por mal-estar e medo. Hoje, 36 anos mais tarde, o que sobra daquela sensação de uma confrontação social atravessada por um erotismo ameaçador e brutal?
Proliferam na internet os sites dedicados ao sexo inter-racial, sempre acompanhado por fantasias de dominação. Darkcavern.com propõe imagens e salas de bate-papo; darksecret.com elabora a doutrina da submissão da mulher branca, casada ou não, ao garanhão preto; mandingoclub.com organiza periodicamente "private parties" (festas particulares) em Nova York e em Los Angeles. Nota: as "private parties" são uma tradição de Manhattan: convocadas por associações privadas, as festas são de acesso fácil, basta pagar o ingresso. É apenas pedida a inscrição (um valor mínimo) a uma das associações que convocam, o que permite catalogar o encontro como reunião de clube. Com isso, o espaço da festa é protegido pelas mesmas garantias que protegem o lar; em outras palavras, dá para brincar pesado.
Em outubro de 2002, para verificar o clima, com minha mulher, estivemos numa "private party" de Mandingo, numa boate, alugada para esse fim, na rua 52. Eram três andares: no primeiro, pessoas de várias cores dançavam esfregando-se voluptuosamente, nos andares de cima os contatos eram mais explícitos. Por exemplo, um grupo de homens negros fazia círculo ao redor de uma loira obesa que, sentada, tentava satisfazer oralmente uma modesta fila de pênis escuros. A pequena platéia encorajava com gritos e aplausos. Insinuados no meio do grupo, assistíamos à prestação da loira. De repente, um jovem negro ao nosso lado virou-se para nós, mostrou a mão com o polegar levantado em sinal de aprovação e comentou: "Cool, men, cooool!" (Legal, pessoal, legaaal!).
Nada a ver com aquele teatro do Village nos anos 60. É como se a tensão social inter-racial, traduzida, nos anos 60, em violenta tensão erótica, tivesse se transformado numa encenação divertida.
As salas de bate-papo para sexo inter-racial, que borbulham hoje na internet, produzem e alimentam uma mudança parecida. Entro numa, ao acaso: "WFandMWFinBlkBar" ("white female and married white female in black bar": mulher branca e mulher branca casada num bar negro). Os perfis dos internautas são tórridos; todos repetem com insistência que eles são "for real", de verdade e da pesada.
Mas, justamente, insistem exageradamente, e não é só para sublinhar que o sujeito está procurando encontros efetivos, e não apenas prazeres cibernéticos, ou que sua autodescrição é fidedigna. Há, na insistência em definir-se como sendo "de verdade", uma tentativa de exorcizar o efeito inevitável do bate-papo: se houver um encontro, ele será a realização do cenário decidido previamente, na conversa. De uma certa forma, será um faz-de-conta, uma encenação.
Encontro outra sala de bate-papo com o título "BlkdeliverymanWF" ("black delivery man, white female": entregador negro e mulher branca). É um exemplo perfeito: os "entregadores" juram que não estão para brincadeira, jogarão as clientes no chão em cima de pizzas e calzones, eventualmente, se isso fizer parte do pedido, na frente do marido. Mas, justamente, se a coisa acontecer, será a realização do script elaborado na conversa.
A fantasia de uma ameaça que era erótica por ser explosiva, incontrolável e arriscada se transformou num jogo que é pactuado, aberto, espetacular.

Sauna
No mundo gay, a coisa não evoluiu de maneira diferente. Os Mt. Morris Baths, no Harlem (na Madison Avenue, entre a 124 e a 125), são a sauna gay veterana de Manhattan, uma das poucas que não fecharam durante o pico da epidemia de Aids. Nos anos 70, antes da epidemia, os Mt. Morris eram um lugar vagamente assustador: uma parte dos clientes (em grandíssima maioria negros) que alugavam as cabines de "descanso" era de pessoas sem moradia fixa, toxicômanos, perdidos na noite (e no dia). Alguns homossexuais brancos se aventuravam por lá atrás de fantasias extremas de serviços sexuais forçados à comunidade carente. Era, de uma certa forma, a revelação e a atuação da face erótica do movimento dos direitos civis, uma modalidade sexual de expiação da culpa social. Ou, então, simplesmente, a ocasião de saborear o conúbio de sexo e domínio. Claro, no fundo, não acontecia nada muito diferente do ordinário de todas as saunas gays, da Califórnia à Costa Leste; mas importavam a sensação de uma tensão social aguda e a expectativa de um risco percebido como real. Hoje, os Mt. Morris são domesticados. O lugar é limpo. Preservativos e lubrificantes são distribuídos na entrada. O clima é camarada. Tanto mais que a política da administração Giuliani nos anos 90, à força de subsídios ou de pauladas, acabou com a matéria-prima dos Mt. Morris do passado: sumiram, ou quase, os negros enlouquecidos pela heroína e por uma raivosa miséria. Como no mundo heterossexual, no mundo gay proliferam as salas inter-raciais de bate-papo com títulos sugestivos: por exemplo, "Domblkm 4 Subwhtm" ("dominant black men for submissive white men", homens negros dominadores para homens brancos submissos). Aqui também as conversas servem para a elaboração de um cenário em que os limites e as fantasias de todos são estabelecidos antes dos encontros. À diferença das salas inter-raciais heterossexuais, abundam os profissionais (negros) que oferecem dominações ameaçadoras. Em seus perfis e em seus sites, os mais "expertos" propõem que o pagamento faça parte da fantasia erótica e declaram que eles não se vendem, mas procuram "moneyslaves" (escravos pagantes). É inventivo: o contrato financeiro, que lembraria inevitavelmente que a dominação não é de verdade, passa assim a ser a prova de que a situação é para valer. Mais um sintoma da mudança na fantasia inter-racial. Já nos anos 70, eram frequentes, em Manhattan, as "blatinos parties", festas particulares para negros, latinos e seus fãs ("blatino" é uma contração de "black & latino"). Ainda no começo dos anos 90, o Afrodeeziak, no Harlem (na rua 128, hoje fechado), funcionava como bordel às segundas-feiras e como sede de "blatino parties" nas outras noites. A praxe era deixar a roupa na entrada e circular nos três andares violentamente orgiásticos. As "blatino parties" ainda existem, regularmente convocadas em lugares diferentes por sites na internet. Mas, hoje, o acesso é subordinado à aprovação por um comitê após o envio de fotografia de corpo inteiro. Em suma, o erotismo do domínio submete-se aos charmes narcisistas das formas.

Festas privadas
No réveillon de 2002, dividimos a noite entre duas "private parties". A primeira era "The Happy Hookers" (as prostitutas felizes), numa boate da Bowery Street, em homenagem temática a Xaviera Hollander (que foi prostituta em Nova York, escreveu um livro de memórias e inaugurou o movimento das prostitutas americanas). A festa era destinada "às trabalhadoras do sexo, a seus clientes e a quem gostasse dessa companhia". O ambiente era esquentado por um espetáculo permanente em que duas prostitutas eram questionadas, algemadas e abusadas por um policial superdotado. Tudo isso ao som repetitivo de uma música cujo refrém escandia: "Do-mi-na-tion, do-mi-na-tion...".
Era engraçado e imprevisto que uma festa cujo tema era a prostituição fosse inteiramente orientada, por assim dizer, por uma encenação sadomasoquista.
A segunda "private party" da noite foi o "New Year's Eve Fetish Ball" (réveillon do fetiche), no clube Shelter, na rua 29. Era convocada por centenas de associações representando todas as orientações sexuais possíveis, desde a Associação dos Fetichistas do Pé até a Associação dos Cornos Mansos de Nova York. Apesar dessa extravagante variedade, a festa era, de uma certa forma, monotemática. Ou seja, todas as orientações singulares e coletivas representadas pareciam encontrar, na festa, um denominador comum no sadomasoquismo. Num canto do salão principal, homens e mulheres faziam fila para serem amarrados em cruzes de Santo André, encapuzados e torturados com açoites, cera quente, pinças e por aí vai. Num outro canto, havia corpos estendidos embaixo de uma tábua e de um cartaz pedindo que todos pisassem à vontade. Por cada lado circulavam "escravos" impedidos em seus movimentos por complexas armações de cordas e correntes. A dinâmica do poder, nas duas festas, se revelava como trunfo da sexualidade urbana moderna, uma espécie de matriz à qual a variedade das fantasias sexuais poderia sempre ser reduzida, como se ela apenas declinasse um sadomasoquismo fundamental. Mas, por mais que o jogo, sobretudo no Fetish Ball, fosse pesado (e alimentado manifestamente a doses preocupantes de metanfetamina), as festas eram, antes de mais nada, espetáculos. Para entender melhor, ajuda comparar um clube gay sadomasoquista dos anos 70, The Mineshaft (tradução literal: "o eixo da mina", mas a idéia é algo como "a caverna do pau"), com outro clube sadomasoquista que fechou recentemente e que, durante os anos 90, foi uma parada obrigatória para os turistas mais ousados que visitassem Nova York: The Vault (a cripta blindada dos bancos).


Passou-se de uma época em que o comércio dos corpos era aberto e tolerado a uma época em que a prostituição é reprimida, mas o espetáculo do sexo está em venda livre


The Vault funcionava assim: casais ou trios (uma dona com seu escravo, um dono com um casal de escravos etc.) compareciam e encenavam suas fantasias diante de um público que, segundo a regra da casa, ficava respeitosamente em silêncio e sem intervir. Era possível, ocasionalmente, que os atores da cena convidassem um dos presentes a desenvolver alguma função acessória. Mas a impressão de assistir a um show ou a uma atração turística era óbvia e confirmada pelo fato seguinte: numa época, a direção teve que informar no ingresso que era proibido tirar fotos e pedir que os clientes deixassem as máquinas fotográficas no vestiário. O Mineshaft dos anos 70 (abriu em 76 e fechou em 85) era um lugar propositalmente sinistro: uma fábrica abandonada e não reformada no "Meat Packing District" (o bairro dos antigos abatedouros de Manhattan, perto do Hudson, abaixo da rua 14). Ninguém pensaria em levar sua máquina fotográfica para o Mineshaft: errava-se em seu espaço com a apreensão (ou o desejo, segundo o caso) de esbarrar numa cena da qual seria difícil eximir-se. No subterrâneo denso de breu, gemidos, ordens e insultos estavam as "tubs", as banheiras: mictórios onde os corpos nus das "vítimas" ficavam deitados horas à fio nas poças, gozando de sua "indignidade" servil. A força erótica do lugar estava nisto: entrar era em si uma fantasia erótica, por ser um pulo no escuro (literalmente) e um risco. Para quem quisesse emoções ainda mais fortes, era possível sair do Mineshaft e aventurar-se pelos armazéns abandonados nos cais do porto, à procura de um encontro demasiado real em que, num desejado conluio de sexo, violência e opressão social, não era raro que um estupro fosse acompanhado de surra e assalto. Hoje a cena sadomasoquista, em Nova York, é composta por dois tipos de estabelecimento. De um lado, no estilo do Vault, há, por exemplo, o Paddles (instrumentos para bater parecidos com as antigas palmatórias), The Noose (a forca) e La Nouvelle Justine (a nova Justine), que oferecem seu espaço a casais ou pequenos grupos que querem mostrar suas obras em público, enquanto uma clientela de curiosos ou masturbadores observa ou -em alguns casos- participa nos limites pedidos. Do outro, Alcatraz, Pandora's Box (a caixa de Pandora) etc. vendem serviços personalizados: numa longa entrevista, escolhe-se detalhadamente o tipo de fantasia desejada, e profissionais capazes a realizam para o cliente, numa variedade de ambientes decorados e equipados com os apetrechos necessários.

Prostituição
No fim dos anos 60, sem dinheiro, passei um mês (agosto de 67, acredito) no hotel mais barato que encontrei, na esquina da Oitava avenida com a rua 42. Na época, aquela área ao redor de Times Square -a mesma onde moro hoje- era uma sucessão quase ininterrupta de cinemas eróticos e "sex-shops", na frente dos quais prostitutos e prostitutas propunham qualquer negócio: uma subida em hotéis sórdidos, uma rapidinha no cinema ou, mais barato ainda, atrás de uma lata de lixo, numa ruela. Era fácil comprar droga, e não era a zona de maconha, mas de heroína e pílulas ("uppers" e "downers", anfetaminas e barbitúricos). Os poucos e minúsculos espaços verdes do bairro (o maior é Bryant Park, na 40 com a Sexta, cerca de dez vezes menor do que o parque Trianon, em São Paulo) eram fechados depois das 18 horas. Cartazes da polícia exortavam os cidadãos a não se aventurarem. De fato, eram sobretudo dormitórios para heroinômanos. O filme "Perdidos na Noite" ["Midnight Cowboy", dirigido por John Schlesinger], de 1969, retrata perfeitamente o clima da Times Square daquela época. Embora inquietantes, as ruas do bairro já atraíam massas de turistas e curiosos diurnos e noturnos. Aparentemente, eles vinham respirar, num mesmo sopro, dejeção social e desejo sexual. Qual é a fascinação que essa fórmula exerce? As zonas de prostituição das grandes cidades são tipicamente destinos turísticos. As "pessoas de bem" que se aventuram nessas áreas não são clientes potenciais enrustidos. No entanto passear pelas ditas ruas do vício, procurar a simples proximidade física da prostituição (particularmente a mais barata) são atividades que têm, para muitos, um valor erótico. Por quê? É óbvio que a coisa não depende de fantasias sobre o sexo que está sendo vendido: afinal, os gestos do amor e da transa são parecidos, quer o encontro seja venal ou não. É a relação comercial, a própria venda, que excita os turistas da prostituição. As áreas de meretrício são zonas erógenas no corpo da cidade porque nelas as relações de poder que atravessam e organizam o tecido urbano se expressam como fantasias e atos sexuais. Na zona, a desigualdade e a opressão confessam sua carga erótica. Parêntese: talvez essa carga seja a razão da incrível persistência da própria opressão, mas essa é outra história... Ora, nos anos 60 e 70, em Nova York, a pornografia era proibida. Nos cinemas da rua 42, o sexo estava nas platéias e nos banheiros; na tela, desfilavam imagens apenas sugestivas. Hoje, nos "sex-shops" que sobrevivem na área, é possível comprar livremente qualquer imagem pornográfica; há uma sala de projeção comum e há cabines individuais para assistir à seleção desejada de filmes ou mesmo a um show particular ao vivo. Mas a prostituição está ausente das ruas. Passou-se de uma época em que o comércio dos corpos era aberto e tolerado a uma época em que a prostituição é cuidadosamente reprimida, mas o espetáculo do sexo está em venda livre.

A festa suingue
O edifício Ansonia é hoje um condomínio de luxo no Upper West Side de Manhattan, na Broadway, entre a rua 73 e a 74. No fim dos anos 70, era um hotel e hospedava o Plato's Retreat, o mais famoso clube de suingue da cidade. Era a versão, digamos assim, um pouco safada das comunidades de costumes livres que, desde o fim dos anos 60, surgiram por todo o mundo ocidental. Muitos queriam celebrar o espírito da contracultura, mas não estavam a fim de instalar-se numa comuna rural, de criar filhos de pai coletivo e de renunciar ao mundo do consumo: contentavam-se com os prazeres do Ansonia.
Hoje, continua a tradição uma série de clubes, como, por exemplo, o Acquiesce (aquiesce) e Le Trapèze (o trapézio). Alguns são reservados aos casais, outros admitem mulheres sozinhas, e outros ainda aceitam também homens sozinhos (que, geralmente, pagam um ingresso exorbitante).
São parecidos com os clubes de suingue paulistas. Sua clientela é composta sobretudo de casais que brincam com uma variedade de fantasias sadomasoquistas: a mulher "forçada" a perder toda a vergonha nas mãos de um terceiro ou de uma terceira, o marido dominado pelo casal de amantes e por aí vai. É frequente que os encontros que acontecem nas pistas de dança, nos cantos e nos colchões do Acquiesce ou de Le Trapèze não sejam casuais, mas marcados e programados (quem sabe, num papo prévio na internet). Os clubes funcionam, nesse caso, como espaços em que as fantasias podem ser realçadas com uma pitada de exibição pública. A presença de uma platéia, por exemplo, aprofunda a humilhação do humilhado ou da humilhada. Em suma, foi-se a sexualidade festiva e um pouco paz e amor do Ansonia. Os clubes de suingue atuais participam do clima geral: um erotismo da dominação que se sustenta como show.
Nova York, a bem dizer, nunca foi uma meca do suingue. Nos anos 60 e 70, a cena suingue era dominada pelos imperativos libertários, mais que libertinos, da contracultura (vide o Ansonia). E hoje ela parece adotar um sadomasoquismo cansado e transformado em espetáculo, sem ter nunca conhecido propriamente uma época "áurea". Em comparação, já nos anos 60, em Paris, o suingue nos clubes e, sobretudo, a céu aberto no parque Bois de Boulogne não era nada contracultural. Erotizava o começo da maior divisão social da história francesa moderna. Nas avenidas do parque, assim como nos clubes, os homens solitários à espera de casais aventurosos eram todos -ou quase- norte-africanos, africanos ou negros originários das Antilhas Francesas. Os primitivos e oprimidos colocariam as mãos sobre as brancas carnes dos donos do pedaço. Eles eram convidados a judiar das damas da boa sociedade e, às vezes, de seus maridos, numa fantasia que erotizava uma distância social que a sociedade francesa não sabia resolver.

Ficção e aposta
A cidade moderna é o lugar de uma ficção e de uma aposta de igualdade de princípio, em que diferenças extremas aceitam conviver, cruzar-se e encontrar-se. Nela, tenta realizar-se uma sociedade que recusa a dominação dos corpos, sem servos e escravos. Nela, o poder não é um atributo de casta; a diferença social é móvel porque é, em grande parte, decidida pela consideração social. O poder é um efeito da riqueza, mas também da reputação, da sedução e, eventualmente, do esbanjamento. O erotismo que corresponde a essa organização social é, idealmente, uma espécie de sensualidade narcisista, o gozo do pavão na hora de entrar na passarela. Estamos, aparentemente, na fase tardia de uma longa transição entre o erotismo da dominação dos corpos e o erotismo narcisista moderno. Aliás, é bem no começo dessa transição (o marquês de Sade é contemporâneo da Revolução Francesa) que foi revelada a fantasia que sustentava o antigo poder. Com isso, ela pôde tornar-se o tema dominante e explícito da "brincadeira" moderna, pois, obviamente, é mais fácil gozar com a opressão ao abrigo do habeas corpus. A prostituição urbana é um bom exemplo dessa transição: ela concilia a forma antiga de domínio (teu corpo é meu) com a forma moderna de poder mercantil: teu corpo é meu por uma hora e por um preço. Nova York era destinada a ser uma meca do erotismo de transição. Por ser a mais importante metrópole americana, reunia duas caraterísticas cruciais: a herança próxima de uma forma absoluta de poder sobre os corpos (a escravatura) e uma paixão modernizadora exacerbada. Inevitavelmente, aos poucos, nesse conflito de erotismos, prevalece aquele que, de fato, sustenta a organização contemporânea do poder. E as fantasias herdadas da antiga forma de domínio se tornam sobretudo ocasiões de dar um show ou de abrir um Museu do Sexo. Paguem o ingresso para ver e passem na loja de suvenires na saída. Sugestão: querem um breviário do erotismo narcisista do século 21? Assistam a "Sex and the City", a série televisiva produzida pela HBO [e exibida no Brasil pelo canal pago Multishow]. Claro, não cabe aqui nenhuma nostalgia. O erotismo narcisista vem num pacote, junto com a democratização que torna socialmente insignificantes, por exemplo, as diferenças de sexo e gênero. Mas é bom saber que a irrelevância social das diferenças acarreta sua irrelevância erótica. O caso, que mencionei, dos antigos armazéns do porto de Nova York é exemplar. O amigo dos anos 70, que me relatava suas repetidas incursões nos cais do porto, saía à procura de homófobos que o estuprassem e batessem para confirmar que eles eram machos e que meu amigo era um "veadinho". Ele gozava disso. Hoje, não há mais gritos em armazéns abandonados no Meat Packing District porque talvez não haja mais espaço para o gozo que meu amigo procurava. Só sobra o show. Em suma, as metrópoles do mundo desenvolvido são mecas do narcisismo, passarelas e shopping centers. As mecas do erotismo da dominação são as cidades do Terceiro Mundo, onde a brincadeira ainda pode ser séria, ou seja, onde o dinheiro ainda autoriza formas de domínio sobre os corpos parecidas com as que estão em extinção no mundo dito desenvolvido. O mito da sensualidade dos corpos tropicais e o da submissão dos corpos asiáticos talvez sejam apenas a maquilagem que esconde o seguinte: os corpos do Terceiro Mundo devem seu charme erótico a uma (temporária, espera-se) ausência de habeas corpus. Será que nossa alternativa é entre um erotismo do domínio brutal e o prazer narcisista do desfile? Nota de otimismo: constato que vários adolescentes de hoje, em sua vida sexual, não parecem obedecer às antigas formas do erotismo do domínio nem aderir aos prazeres narcisistas modernos. Espero para ver.

"Barebacking"
Nos últimos anos, tornou-se frequente, no mundo gay de Nova York e de muitas metrópoles, a prática do "barebacking", transar analmente sem preservativo. Há numerosos sites na internet consagrados aos prazeres do "barebacking" (por exemplo, barebacksex.com). Nos perfis que indicam as preferências sexuais nas salas de bate-papo, é banal que seja indicada uma preferência ou expressada a exigência de que o sexo seja sem proteção.
Quando, quatro anos atrás, a imprensa gay americana começou a debater seriamente (e combater) o fenômeno, talvez se tratasse de uma reação contra décadas de sexo excessivamente protegido. A lógica era: proibimos até o sexo oral sem preservativo, as pessoas cansaram e deixam completamente de se proteger. Ou, então: à força de transar sob o peso de uma ameaça constante, a contaminação aparece como uma libertação.
De fato, inicialmente, a prática parecia ser própria a sujeitos HIV positivos que, "enfim", se soltavam. Ou ela era escolhida por grupos de sujeitos comprovadamente HIV negativos que se encontravam para transar livremente entre si. Mas aconteceu uma mudança radical na prática do "barebacking". A transa anal não protegida passou a ser explicitamente proposta por sujeitos que se declaram HIV positivos, como uma promessa erótica de contaminação. Simétricos, apareceram sujeitos HIV negativos procurando transas não protegidas com parceiros positivos.
Nesse círculo, a passagem do vírus é chamada "the gift", o presente, sem ironia. Existem festas (verdadeiramente particulares, estas) em que sujeitos HIV negativos se submetem a penetrações múltiplas e não protegidas por sujeitos HIV positivos. Isso na frente de uma pequena platéia de amigos chamados para celebrar o acontecimento.
É, no mínimo, uma insurreição desesperada contra o erotismo narcisista. Se ninguém quer ou consegue mais dominar de verdade, é possível recorrer ao mestre absoluto, à morte, com quem a brincadeira será inevitavelmente séria. Com quem, aliás, a brincadeira não será só uma brincadeira.
Nos anos 60, fantasiava-se bastante sobre os "snuff movies", os filmes (se é que existiram) em que a vítima de uma cena sadomasoquista era sacrificada realmente.
Essas notas sobre o sexo na cidade de Nova York hoje seriam demasiado falhas se não registrassem o seguinte. Há um erotismo da dominação que perdeu fôlego, mas sobrevive ganhando a visibilidade de um show. Há o prazer constante do desfile narcisista. E há também a voz de uma revolta extrema contra o faz-de-conta. Diz assim: querem que tudo seja um filme? Pois bem, serei a vítima de meu próprio "snuff movie". E agora me digam: ainda é apenas um show?

Contardo Calligaris é psicanalista e colunista da Folha. É autor de "Hello Brasil" (Escuta), entre outros. E-mail: ccalligari@uol.com.br


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