UOL


São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ autores

Prioridade na região é a formação de um conjunto de países confiantes em sua capacidade de desenvolvimento

A difícil unidade da América Latina

Luis Romero - 8.jul.2003/Associated Press
Conferência realizada em San Salvador (El Salvador) para discutir a Alca


Alain Touraine

A unidade da América Latina sempre foi mais ideológica do que real. Foram as guerras de independência que uniram os dirigentes dos países libertados da dominação espanhola e criaram uma consciência continental, pelo menos na América hispanófona, onde o nome de Bolívar simbolizou, muito além da obra imensa do libertador, essa consciência de unidade. A seguir, os países se afastaram uns dos outros, sobretudo em razão da imigração maciça de populações européias no sul do continente. A Argentina e o Uruguai enriqueceram a ponto de se compararem mais facilmente aos EUA do que a seus vizinhos latino-americanos. As tentativas de integração cultural não tiveram grande sucesso, mesmo se pactos regionais produziram efeitos muito positivos sobre o comércio regional. Na verdade, foi o antiamericanismo, reforçado consideravelmente pela vitória da revolução cubana e pela influência das guerrilhas e dos movimentos antiimperialistas, que promoveu o desenvolvimento da idéia latino-americana. Hoje, quer isso agrade ou não, mais vale falar de América do Sul do que de América Latina, já que o México entrou no Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte). Em contrapartida, o Brasil adquiriu um tal poder que é difícil colocá-lo no mesmo nível que a maior parte dos países hispanófonos. Uma união latino-americana seria tão desequilibrada quanto a União Européia na qual coexistem países grandes e muito pequenos, mas esta se formou em torno da vontade das grandes potências de pôr fim às guerras intra-européias que incendiaram o mundo. A América Latina acha-se diante de uma escolha que deve ser clara, entre duas políticas opostas uma à outra. Ela pode atribuir-se como objetivo principal a criação de uma unidade latino-americana formada em torno da resistência à hegemonia norte-americana. Mas essa concepção esbarra de imediato no fato de que países tão importantes como o Chile são mais atraídos pelo mercado norte-americano do que pela integração num conjunto pobre, sem autoridade central e ameaçado constantemente por crises violentas. Os que defendem essa tese latino-americanista fazem de Hugo Chávez [presidente da Venezuela] um novo símbolo da luta antiimperialista. O jornal "Le Monde Diplomatique", em sua edição em espanhol, obtém um grande sucesso ao se identificar às teses antiamericanistas. Mas é difícil aos defensores dessa tese responder à questão: qual seria a capacidade de decisão, e portanto de integração, de uma América Latina unificada? Aumenta-se a capacidade de iniciativa do Brasil associando-o à Bolívia? O que há de comum entre o Chile, cujo Estado sempre foi forte ou muito forte, e a Colômbia, fragmentada pela violência?

Posição inversa
Isso conduz à posição inversa da que defendem os partidários da integração continental. Se se quiser aumentar a capacidade da América Latina de tomar decisões, é preciso formar um bloco reduzido de países decididos a ter a maior capacidade de ação possível sobre o continente e que já possuam meios importantes para chegar a isso. Uma fórmula como essa só tem um sentido concreto: formar em torno do Brasil e sob sua direção um pequeno grupo de países capazes de agir e de ser governados no interior dos critérios que definem o mundo ocidental. Mas, mesmo assim, o sucesso não é garantido, pois nenhum país, nem mesmo o Brasil, faz um esforço suficiente para entrar no grupo daqueles cujas decisões afetam o conjunto do mundo. Até aqui, nenhum país latino-americano desempenhou um papel importante em nível mundial. Poder-se-ia mesmo dizer que os países da América Latina vão ser agora ainda mais diretamente submetidos aos Estados Unidos do que no passado, pois os dirigentes norte-americanos proclamaram sua vontade de intervir diretamente e sozinhos em todas as partes do mundo em que seus interesses e valores lhes pareçam ameaçados. No entanto é aqui que cabe introduzir uma hipótese que muitos julgarão paradoxal ou evidentemente falsa. É a hipótese segundo a qual a concentração do conflito mundial no Oriente Médio, região do mundo onde os países da América Latina não têm nem interesses nem influência, poderia perfeitamente dar a estes, no que se refere a seus negócios, uma autonomia bem maior do que antes e sobretudo maior do que aquela que o FMI lhes negou. O peso da América Latina nas estratégias geopolíticas atuais é tão pequeno, tão próximo de ser inexistente, que essa fraqueza mesma deixa aos governos da América Latina uma margem de liberdade que eles não tinham anteriormente. Para convencer-se disso, basta comparar a maneira como se fala hoje da Alca, cuja formação é muito recente, àquela como se falava havia três anos. O que até pouco tempo atrás era um monstro diabólico é visto hoje como uma necessidade à qual é preciso submeter-se, dada a hegemonia norte-americana. E não é mais tão frequente quanto antes ouvir anunciar o fim de toda independência nacional e de toda capacidade de progresso social a partir do momento em que a Alca se apoderasse de um país.

Fatores internos
Mas, para além das hipóteses que têm por objeto a conjuntura presente, é preciso voltar ao essencial. Alguns países no mundo entram na zona do que foi chamado o "crescimento auto-sustentado". Não é mais possível se contentar, para explicar o subdesenvolvimento, em condenar os obstáculos externos ao crescimento e à integração. O que caracteriza os países desenvolvidos é que eles reconhecem que os fatores internos de desenvolvimento ou de estagnação são mais importantes que os fatores externos, fatores esses que têm, ao contrário, um peso maior nos países pouco desenvolvidos.
A prioridade na América Latina é que se forme um conjunto ao mesmo tempo econômico e político de países que tenham confiança em sua própria capacidade de desenvolvimento e que busquem aumentar sua capacidade de decisão, enfrentando os conflitos sociais com instituições capazes de administrar esses conflitos e de transformá-los em processo controlado de mudança social. Minha convicção é de que essa força pode se formar rapidamente em torno do Brasil, sobretudo agora que a Argentina rompeu com o que a arrastava para a morte e demonstrou, desde a eleição de Kirchner, sua capacidade de reerguimento e de ação voluntária.

Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Paulo Neves.


Texto Anterior: O sexo na cidade
Próximo Texto: + livros: A vida em suspensão
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.