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São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

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"O Brasil Best-Seller de Jorge Amado", de Ilana Goldstein, traça o itinerário midiático e institucional do autor de "Dona Flor e Seus Dois Maridos"

A fabulação etnológica da Bahia

Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha

De início imaginei, dando uma olhada no título, que este livro fosse mais uma xaropada apologética sobre o escritor chapa-branca de ACM, Sarney, Collor, FHC, que no passado entoou o batuque stalinista no partidão, ganhando o prêmio Stálin, depois de frequentar a Universidade Livre do Pelourinho. Enganei-me, pois, na verdade, o livro de Ilana Goldstein traça com abordagem crítica o itinerário midiático e institucional do romancista brasileiro mais famoso da contemporaneidade. Oswald de Andrade saudou com entusiasmo o romance "Jubiabá", mas no final da década de 30 considerou Jorge Amado uma impostura literária e ideológica, juízo esse que não era fruto de um revide ao desprezo do escritor baiano pela Semana de Arte Moderna de 22 e os meninos modernistas grã-finos de São Paulo. Em meados da década de 40, no estádio do Pacaembu, nas fileiras do partidão, homenagem a Pablo Neruda, Jorge de Amado, o intelectual, passará rasteira em Oswald de Andrade, o tarefeiro da militância. O assunto Jorge Amado está longe de ser ameno e água-com-açúcar. É que o Brasil até hoje se divide entre quem gosta e quem não gosta dele. O cineasta Glauber Rocha, por exemplo, adorava os romances de Jorge Amado. Atitude oposta é a da crítica literária Walnice Nogueira Galvão, sobre o tamanho cada vez maior de seus romances para o mercado. Curiosamente, dos filmes glauberianos, o pior talvez seja justamente aquele sobre o lançamento de um livro de seu amigo. Na memória intitulada "Navegação de Cabotagem", Jorge Amado não nos oferece nenhum retrato pessoal, artístico, crítico que valha a pena sobre o cineasta genial.


Dom Cascudo não entregou ao negro, como Jorge Amado e o regionalismo baiano, o domínio da nossa psicologia religiosa e popular


Elogio e ocultação
A autora mostra que o "nacionalismo" de Jorge Amado nunca foi político-partidário. E, do ponto de vista cultural, dir-se-ia que o elogio amadiano à miscigenação corre paralelo à ocultação do domínio imperialista estrangeiro, em que a Bahia de todos os santos não é evidentemente exceção, de modo que a esfera regional deixa de ser imperializada para se tornar macumba para turista na drenagem da mais-valia para o exterior. O talento literário de Jorge Amado é medido pela sua força político-institucional. Ele pode ser considerado o padrinho ideológico do regionalismo baiano de ACM, a casa-grande sensual e sibarita das ramificações pop e ministeriais do tropicalismo. O "tudo para a Bahia" não altera em nada a situação do pobre baiano que é preto. O detalhe significativo apontado pela autora é que, na fabulação etnológica das três raças, o índio leva a pior. Escrevendo para os venezuelanos, Darcy Ribeiro acusou Gilberto Freyre de ter subestimado a presença da cunhã em "Casa-Grande & Senzala". Os romances de Jorge Amado se nutrem do material afrolusobaiano como sendo a base da cultura popular brasileira, deixando entrever nessa mestiçagem o papel decisivo do "umbigo africano". Isso no entanto não é verdade nem para a Bahia, em cuja cultura popular o negro não é a etnia determinante, conforme revelou desde os finais da década de 30 o "doutor em preto" Luís da Câmara Cascudo, que tem sido sistematicamente sabotado pela ideologia midioaxé que tomou conta das ciências sociais.

Cartilha ruidosa
Conhecedor profundo de Nina Rodrigues, de Manuel Querino, de Edson Carneiro, dom Cascudo não entregou ao negro, como Jorge Amado e o regionalismo jesuítico-oligárquico baiano, o domínio da nossa psicologia religiosa e popular. Mistificação, Horácio, mistificação.
O intrigante é que essa mistificação seja aceita e reproduzida por gente que se diz de esquerda. Todo mundo culturalmente rezando pela cartilha da baianidade, que hoje é sonora e cada vez mais ruidosa: é o Jorge Amado no ciberespaço. Essa frase de Goldstein revela a essência da épica best-seller: "Os problemas são do Brasil-Estado, mas a alegria é a da Bahia-nação". Não é por acaso que politicamente, na ciranda "Estado versus sociedade civil", sapecaram vatapá na obra de Gramsci.

Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "Biomassa" (ed. Senac).


O Brasil Best-Seller de Jorge Amado
324 págs., R$ 45,00
de Ilana Seltzer Goldstein. Ed. Senac (r. Rui Barbosa, 377, 1º andar, CEP 01326-010, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3284-4322).


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