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São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

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"Política Externa da Primeira República" foca a relação Brasil-Argentina e a hegemonia dos EUA entre 1902-18

O jogo de xadrez de um barão pragmático

Hélgio Trindade
especial para a Folha

O livro "Política Externa da Primeira República - Os Anos de Apogeu: de 1902 a 1918" traz uma boa contribuição ao estudo do período. Talvez a mais evidente seja a documentação original: dos arquivos do Ministério dos Assuntos Estrangeiros da França ao Arquivo do Itamaraty, do barão de Rio Branco, jornais, brasileiros e argentinos, anais, relatórios e vasta bibliografia.
Partindo da observação de Aron de que as alterações dos regimes políticos repercutem na política externa, o autor passa a traçar o novo quadro propiciado pelo estabelecimento da república.
Trata-se de analisar os resultados externos da "política dos governadores" que restabeleceu a ordem interna. Nesse quadro sobressai a segunda qualidade do livro: o estudo da obra e da personalidade do barão do Rio Branco, que, por dez anos, ficou à frente do Ministério de Relações Exteriores. Respeitado nacionalmente, figura típica da elite imperial, o barão será o grande homem da política externa brasileira. Cabe então uma primeira pergunta: será que a mudança de regime acarretou grandes alterações na prática política brasileira? O próprio autor reconhece, os dois homens da "estabilidade" -Rio Branco e Rodrigues Alves- são entes imperiais.
E a política levada a cabo pelo barão segue, contraditoriamente, a máxima do império: o Brasil é uma nação diferente das demais irmãs latino-americanas onde impera o caos, seu grande território foi preservado pela precoce opção da elite, com uma população maior, pode almejar um lugar entre os grandes.
Nesse sentido, o barão é pragmático. Conhecedor profundo da política européia, intui a passagem, na América Latina, da hegemonia britânica para a órbita dos interesses norte-americanos e busca construir uma lógica baseada na complementaridade de interesses: os EUA, sendo os maiores compradores do café brasileiro, o Brasil facilita a entrada dos manufaturados americanos. Cria-se, também, a prática das "reuniões continentais" e dos projetos de integração de mercados. Discussões políticas que terminam ficando no papel, mas que produzem o diálogo, de ambas as partes. O que prevalece, entretanto, é uma lógica comercial, pois o barão trabalha como num jogo de xadrez, articulando a nova hegemonia comercial americana, a ascensão do imperialismo alemão, as velhas relações com a Inglaterra e os vínculos culturais com a França. Nesse quadro ele move os interesses brasileiros (principalmente os dos cafeicultores), aproximando-se dos EUA, mas não rompendo com a antiga tradição européia.

Reduto da civilização
O terceiro ponto, que traz uma face instigante, refere-se às relações Brasil-Argentina. Maior exportadora mundial de grãos (em 1909 supera os EUA), a Argentina se considerava o reduto da civilização na América Latina. A análise dos altos e baixos dessa relação nos coloca diante de um problema atual: a virtualidade ou não de entidades como o Mercosul, que repousa sobre essa matriz conflitiva. Ainda aqui, ressalte-se a habilidade política do barão, que, buscando uma aliança, aproxima-se também do Chile -a tríplice "entente"- como forma de dissuadir imperialismos e mostrar que o Cone Sul da América tinha alguma articulação política.
Passados cem anos, os problemas parecem retornar. Os anos posteriores a 1912, mesmo a eclosão da Primeira Guerra, não tiveram o impacto sobre nossa política externa como a década "riobranquina". Algumas perguntas, entretanto, ficam sem resposta: Por que o projeto da estrada de ferro panamericana não saiu do papel? Por que, mesmo depois de Rio Branco, o Brasil permaneceu de costas para a América Latina? De qualquer forma, trata-se de uma leitura que, longe de tratar de pontos remotos na nossa história, nos remete para questões de grande atualidade política.


Hélgio Trindade é professor titular de ciência política na Universidade Federal do Ro Grande do Sul e autor de "Universidade em Ruínas" (ed. Vozes).

Política Externa da Primeira República
506 págs., R$ 45,00
de Clodoaldo Bueno. Ed. Paz e Terra (r. do Triunfo, 177, CEP 01212-010, SP, tel. 0/ xx/11/ 3337-8399).


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