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São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

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Em "Nada Como o Sol", o crítico e romancista Anthony Burgess faz um retrato da vida amorosa do dramaturgo inglês, que era uma de suas obsessões literárias

Dependência química de Shakespeare

Rubens Figueiredo
especial para a Folha

Em 1959, quando era professor na Malásia, o escritor inglês Anthony Burgess (1917-93) desmaiou em sala de aula. Os médicos diagnosticaram um tumor cerebral e lhe deram apenas um ano de vida. De volta à Inglaterra, Burgess escreveu cinco livros em um ano, mas não morreu.
Na verdade, escrever nunca foi problema para ele. Célebre sobretudo pelo romance "A Laranja Mecânica" (1962), produziu uma quantidade espantosa de livros: romances, ensaios de crítica literária e de linguística, biografias e autobiografias. Era também músico, compositor de sinfonias e sonatas, e poliglota, capaz de comunicar-se em dez línguas: do russo ao malaio, do sueco ao chinês.
Talvez as duas chaves da sua obra de ficção sejam a paródia e o trocadilho. Acrescentem-se um entusiasmo vertiginoso pela erudição e uma veia cômica de feição sombria e teremos uma síntese razoável do que Burgess nos oferece. Suas obsessões literárias eram Marlowe, Shakespeare e Joyce, sobre os quais escreveu não só ensaios como também investigações ficcionais.
É o caso deste "Nada como o Sol", romance sobre a "vida amorosa de Shakespeare", lançado em 1964 e agora traduzido no Brasil. As pesquisas que dão respaldo a essa ficção foram as mesmas sumariadas, em forma de ensaio, no livro de 1970, intitulado "Shakespeare". Contudo, por mais acuradas que sejam suas informações biográficas e literárias, não se espere de Burgess um romance histórico nos moldes realistas de costume. Seu modelo e seu espelho são a linguagem em si mesma, portanto não admira que encontremos em "Nada como o Sol" passagens como: "A vida, em certo sentido, é toda feita de mentiras"; "tudo é encenação"; "as palavras foram criadas para enganar"; "palavras, fingimentos ficções, aquilo governava tudo".
Essa crença vem a calhar quando um romancista se propõe reconstituir um personagem histórico nebuloso, cujas circunstâncias de vida têm sido objeto de muitas dúvidas. Ainda resta algum fôlego para a tese de que as peças de Shakespeare foram escritas por Francis Bacon ou pelo conde de Oxford ou até pela rainha Elisabeth 1ª. Nem mesmo possuímos um retrato confiável do poeta.
Assim, a par de muitas informações fidedignas como a origem familiar, o casamento, a carreira bem-sucedida de ator, dramaturgo e diretor de companhia teatral, Burgess se aventura, em seu romance, a hipóteses mais livres: a mulher o traiu com o irmão mais novo; Shakespeare teve um caso homoerótico com um nobre conspirador, enaltecido em seus versos; a misteriosa dama negra cantada em alguns poemas era uma prostituta muçulmana de alto nível, origem da sífilis que o matou.
Para escrever "Nada como o Sol", Burgess se impregnou da vida e da linguagem da época, sobretudo a que vigora nas obras de Shakespeare. Com esse ânimo, arrisca-se a imaginar, por exemplo, o que acontecia, à volta do poeta e em seu pensamento, no exato instante em que escrevia certos versos.
Numa fantasia retrospectiva, também aponta indícios da Guerra Civil que só irromperia após a morte de Shakespeare. Porém, nas numerosas descrições de sexo, a música de Burgess soa fora de tom: "Soltou seu leite no mel dela", "se enfiar na recôndita portinhola dourada naquela casa de ouro", "os dois foram rolando juntos por quilômetros de ar perfumado até pousar em plumas de cisne". E seu fraco pelo trocadilho dá ensejo a constrangedores jogos de palavras e de formas anatômicas em torno dos vocábulos "torre", "ereção" e "globo", numa alusão ao teatro Globe que um empresário amigo planejava "erigir" para a companhia de Shakespeare.
Em romances desse teor, há sempre o perigo de se subordinar ao didatismo, e "Nada como o Sol" não se livra dessa agrura. Mas seu momento didático não é o da aula, e sim o da prova. Para o leitor, trata-se menos de aprender do que de testar seus conhecimentos, sob a pressão indagadora de alusões entrecruzadas, de citações disfarçadas ou sem referências, de trocadilhos múltiplos, de paródias veladas, de sabe-se lá quantas charadas filológicas e bibliográficas costuradas no verso de alguma cena ou frase. Quem tiver feito uma prova de vestibular nos últimos anos e houver enfrentado as filigranas da múltipla escolha terá uma idéia do treinamento necessário para classificar-se ao fim da leitura do livro.
Harold Bloom e outros bardólatras famosos têm em alta conta "Nada como o Sol". No entanto receio que, em vez de um culto ao bardo, passa-se ao estágio da dependência química, quando a erudição toma, em tal proporção, a forma de um esporte, que se regozija com a disputa de recordes e de pontos marcados no placar.


Rubens Figueiredo é escritor e tradutor. É autor de, entre outros livros, "Barco a Seco" e "As Palavras Secretas" (Companhia das Letras).

Nada como o Sol
256 págs., R$ 32,00
de Anthony Burgess. Trad. Paulo Reis. Ediouro (r. Nova Jerusalém, 345, CEP 21042-230, RJ, tel. 0/ xx/21/3882-8240).


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