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Em "Nada Como o Sol", o crítico e romancista Anthony Burgess faz um retrato
da vida amorosa do dramaturgo inglês, que era uma de suas obsessões literárias
Dependência química de Shakespeare
Rubens Figueiredo
especial para a Folha
Em 1959, quando era professor na
Malásia, o escritor inglês Anthony
Burgess (1917-93) desmaiou em
sala de aula. Os médicos diagnosticaram um tumor cerebral e lhe deram
apenas um ano de vida. De volta à Inglaterra, Burgess escreveu cinco livros em
um ano, mas não morreu.
Na verdade, escrever nunca foi problema para ele. Célebre sobretudo pelo romance "A Laranja Mecânica" (1962),
produziu uma quantidade espantosa de
livros: romances, ensaios de crítica literária e de linguística, biografias e autobiografias. Era também músico, compositor de sinfonias e sonatas, e poliglota,
capaz de comunicar-se em dez línguas:
do russo ao malaio, do sueco ao chinês.
Talvez as duas chaves da sua obra de
ficção sejam a paródia e o trocadilho.
Acrescentem-se um entusiasmo vertiginoso pela erudição e uma veia cômica de
feição sombria e teremos uma síntese razoável do que Burgess nos oferece. Suas
obsessões literárias eram Marlowe, Shakespeare e Joyce, sobre os quais escreveu
não só ensaios como também investigações ficcionais.
É o caso deste "Nada como o Sol", romance sobre a "vida amorosa de Shakespeare", lançado em 1964 e agora traduzido no Brasil. As pesquisas que dão respaldo a essa ficção foram as mesmas sumariadas, em forma de ensaio, no livro
de 1970, intitulado "Shakespeare". Contudo, por mais acuradas que sejam suas
informações biográficas e literárias, não
se espere de Burgess um romance histórico nos moldes realistas de costume. Seu
modelo e seu espelho são a linguagem
em si mesma, portanto não admira que
encontremos em "Nada como o Sol"
passagens como: "A vida, em certo sentido, é toda feita de mentiras"; "tudo é encenação"; "as palavras foram criadas para enganar"; "palavras, fingimentos ficções, aquilo governava tudo".
Essa crença vem a calhar quando um
romancista se propõe reconstituir um
personagem histórico nebuloso, cujas
circunstâncias de vida têm sido objeto de
muitas dúvidas. Ainda resta algum fôlego para a tese de que as peças de Shakespeare foram escritas por Francis Bacon
ou pelo conde de Oxford ou até pela rainha Elisabeth 1ª. Nem mesmo possuímos um retrato confiável do poeta.
Assim, a par de muitas informações fidedignas como a origem familiar, o casamento, a carreira bem-sucedida de ator,
dramaturgo e diretor de companhia teatral, Burgess se aventura, em seu romance, a hipóteses mais livres: a mulher o
traiu com o irmão mais novo; Shakespeare teve um caso homoerótico com
um nobre conspirador, enaltecido em
seus versos; a misteriosa dama negra
cantada em alguns poemas era uma
prostituta muçulmana de alto nível, origem da sífilis que o matou.
Para escrever "Nada como o Sol", Burgess se impregnou da vida e da linguagem da época, sobretudo a que vigora
nas obras de Shakespeare. Com esse ânimo, arrisca-se a imaginar, por exemplo,
o que acontecia, à volta do poeta e em seu
pensamento, no exato instante em que
escrevia certos versos.
Numa fantasia retrospectiva, também
aponta indícios da Guerra Civil que só irromperia após a morte de Shakespeare.
Porém, nas numerosas descrições de sexo, a música de Burgess soa fora de tom:
"Soltou seu leite no mel dela", "se enfiar
na recôndita portinhola dourada naquela casa de ouro", "os dois foram rolando
juntos por quilômetros de ar perfumado
até pousar em plumas de cisne". E seu
fraco pelo trocadilho dá ensejo a constrangedores jogos de palavras e de formas anatômicas em torno dos vocábulos
"torre", "ereção" e "globo", numa alusão
ao teatro Globe que um empresário amigo planejava "erigir" para a companhia
de Shakespeare.
Em romances desse teor, há sempre o
perigo de se subordinar ao didatismo, e
"Nada como o Sol" não se livra dessa
agrura. Mas seu momento didático não é
o da aula, e sim o da prova. Para o leitor,
trata-se menos de aprender do que de
testar seus conhecimentos, sob a pressão
indagadora de alusões entrecruzadas, de
citações disfarçadas ou sem referências,
de trocadilhos múltiplos, de paródias veladas, de sabe-se lá quantas charadas filológicas e bibliográficas costuradas no
verso de alguma cena ou frase. Quem tiver feito uma prova de vestibular nos últimos anos e houver enfrentado as filigranas da múltipla escolha terá uma
idéia do treinamento necessário para
classificar-se ao fim da leitura do livro.
Harold Bloom e outros bardólatras famosos têm em alta conta "Nada como o
Sol". No entanto receio que, em vez de
um culto ao bardo, passa-se ao estágio da
dependência química, quando a erudição toma, em tal proporção, a forma de
um esporte, que se regozija com a disputa de recordes e de pontos marcados no
placar.
Rubens Figueiredo é escritor e tradutor. É autor
de, entre outros livros, "Barco a Seco" e "As Palavras Secretas" (Companhia das Letras).
Nada como o Sol
256 págs., R$ 32,00
de Anthony Burgess. Trad. Paulo Reis. Ediouro (r.
Nova Jerusalém, 345, CEP 21042-230, RJ, tel. 0/
xx/21/3882-8240).
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