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São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

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Ponto de fuga

O pastor das musas

Jorge Coli
especial para a Folha

"Orsay, o Louvre, nada mal numa carreira." Essa pequena frase foi dita a Michel Laclotte por François Mitterrand. Laclotte é discreto. Foi ele, no entanto, quem levou a termo a criação do museu d'Orsay e a transformação radical do museu do Louvre em "o novo Louvre". Laclotte é também responsável por feitos "menores", mas que fariam brilhar o currículo de qualquer outro. Assim, o museu do Petit Palais, em Avignon, que abriga uma esplêndida coleção de "primitivos" italianos e provençais. Ligou-se a todos os projetos importantes que se referiram aos museus franceses nos últimos 50 anos. Publicou agora "Histoires de Musées - Souvenirs d'un Conservateur" (Histórias de Museus - Lembranças de um Conservador, ed. Scala). É uma longa entrevista rememorando sua carreira, que corresponde a um período efervescente para os museus internacionais.
Nesse livro, Laclotte nunca se centra em si mesmo. Sua visão pessoal se dilata sempre para questões objetivas, para debates essenciais sobre pontos de museologia, de política cultural e artística. Problemas de restauração, de preservação, de escolha de obras; decisões amplas e de grande alcance são vividas pelo leitor "por dentro". A experiência individual, a narração dos acontecimentos, muitos deles, por si só, de enorme importância, ampliam-se em sugestões reflexivas. Não se pode falar de uma lição de vida, pois emana do texto uma convicção, ao mesmo tempo suave e firme, e uma serenidade que não se ensinam. Mas há muito que aprender nele sobre a vida concreta dos objetos de arte.

Festa - O museu d'Orsay, que é o museu da segunda metade do século 19, teve uma incidência determinante na história das artes e do gosto contemporâneos. Confirmou, de modo visível e definitivo, o fim dos critérios modernos no campo artístico, que entraram em crise nos anos de 1970. Nesse sentido, foi o mais espetacular instrumento da assim chamada "pós-modernidade", pelo menos ao enfrentar os velhos parâmetros do século 20. Às vanguardas, a Cézanne, a Van Gogh, aos impressionistas, ele associou, pondo em valor, o que se denominava antes, num modo impreciso e preconceituoso, de "acadêmicos".

Nuanças - Orsay, museu pós-moderno: isso é verdade apenas porque ele é crítico à hegemonia moderna: seu projeto eliminou, porém, toda superficialidade frívola, em benefício de uma perspectiva histórica séria. Além disso, resultou num ambiente eufórico, festivo e prazeroso. Pode-se por reparo, aqui e ali, em certos partidos arquiteturais ou museográficos, como a transferência do "Enterro em Ornans", de Courbet: quando estava no Louvre, essa grande obra mantinha um diálogo cerrado com a "Coroação de Napoleão", de David. Tudo isso é muito secundário, porém: o resultado é um museu admirável.

Templo - A remodelação do Louvre, cujo aspecto mais conhecido é a pirâmide de vidro concebida pelo arquiteto Ieoh Ming Pei, deu uma nova energia ao velho museu. Tornou-o cômodo, receptivo: o esplêndido pátio das esculturas francesas recebe o visitante antes mesmo que ele entre no edifício. Mas alguns resultados parciais ficaram aquém do que se podia esperar.
Perdeu-se a oportunidade de abandonar a velha repartição por "escolas" nacionais. As artes foram sempre utilizadas como instrumentos de identidades ideológicas; criaram-se então, no passado, as "escolas" artísticas: francesa, italiana, alemã etc., mesmo quando essas nações, de fato, ainda não existiam! O novo Louvre confirmou essas antigas categorias sem discutir, ao invés de mostrar o quanto as artes são feitas de diálogos, trocas, contaminações. Contemporâneo do euro, ele se afasta do projeto europeu que está se formando para isolar as obras de arte segundo as nações. Algumas apresentações amesquinharam os acervos, como no caso das esculturas italianas. É possível também lamentar certas mudanças, como a da velha sala dos Rubens, de Maria de Médicis, onde as molduras do século 19 pareciam ter se fundido com as telas. Elas foram substituídas por um design atual, frio e triste.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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