|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de fuga
O pastor das musas
Jorge Coli
especial para a Folha
"Orsay, o Louvre, nada mal numa carreira." Essa pequena frase foi dita a Michel Laclotte por François Mitterrand. Laclotte é discreto. Foi ele, no entanto, quem levou a termo a criação do museu d'Orsay e a transformação radical do museu do Louvre em "o novo Louvre".
Laclotte é também responsável por feitos "menores",
mas que fariam brilhar o currículo de qualquer outro.
Assim, o museu do Petit Palais, em Avignon, que abriga
uma esplêndida coleção de "primitivos" italianos e provençais. Ligou-se a todos os projetos importantes que se
referiram aos museus franceses nos últimos 50 anos.
Publicou agora "Histoires de Musées - Souvenirs d'un
Conservateur" (Histórias de Museus - Lembranças de
um Conservador, ed. Scala). É uma longa entrevista rememorando sua carreira, que corresponde a um período efervescente para os museus internacionais.
Nesse livro, Laclotte nunca se centra em si mesmo.
Sua visão pessoal se dilata sempre para questões objetivas, para debates essenciais sobre pontos de museologia, de política cultural e artística. Problemas de restauração, de preservação, de escolha de obras; decisões
amplas e de grande alcance são vividas pelo leitor "por
dentro". A experiência individual, a narração dos acontecimentos, muitos deles, por si só, de enorme importância, ampliam-se em sugestões reflexivas. Não se pode falar de uma lição de vida, pois emana do texto uma
convicção, ao mesmo tempo suave e firme, e uma serenidade que não se ensinam. Mas há muito que aprender
nele sobre a vida concreta dos objetos de arte.
Festa - O museu d'Orsay, que é o museu da segunda
metade do século 19, teve uma incidência determinante
na história das artes e do gosto contemporâneos. Confirmou, de modo visível e definitivo, o fim dos critérios
modernos no campo artístico, que entraram em crise
nos anos de 1970. Nesse sentido, foi o mais espetacular
instrumento da assim chamada "pós-modernidade",
pelo menos ao enfrentar os velhos parâmetros do século 20. Às vanguardas, a Cézanne, a Van Gogh, aos impressionistas, ele associou, pondo em valor, o que se denominava antes, num modo impreciso e preconceituoso, de "acadêmicos".
Nuanças - Orsay, museu pós-moderno: isso é verdade
apenas porque ele é crítico à hegemonia moderna: seu
projeto eliminou, porém, toda superficialidade frívola,
em benefício de uma perspectiva histórica séria. Além
disso, resultou num ambiente eufórico, festivo e prazeroso. Pode-se por reparo, aqui e ali, em certos partidos
arquiteturais ou museográficos, como a transferência
do "Enterro em Ornans", de Courbet: quando estava no
Louvre, essa grande obra mantinha um diálogo cerrado
com a "Coroação de Napoleão", de David. Tudo isso é
muito secundário, porém: o resultado é um museu admirável.
Templo - A remodelação do Louvre, cujo aspecto mais
conhecido é a pirâmide de vidro concebida pelo arquiteto Ieoh Ming Pei, deu uma nova energia ao velho museu. Tornou-o cômodo, receptivo: o esplêndido pátio
das esculturas francesas recebe o visitante antes mesmo
que ele entre no edifício. Mas alguns resultados parciais
ficaram aquém do que se podia esperar.
Perdeu-se a oportunidade de abandonar a velha repartição por "escolas" nacionais. As artes foram sempre
utilizadas como instrumentos de identidades ideológicas; criaram-se então, no passado, as "escolas" artísticas: francesa, italiana, alemã etc., mesmo quando essas
nações, de fato, ainda não existiam! O novo Louvre confirmou essas antigas categorias sem discutir, ao invés de
mostrar o quanto as artes são feitas de diálogos, trocas,
contaminações. Contemporâneo do euro, ele se afasta
do projeto europeu que está se formando para isolar as
obras de arte segundo as nações. Algumas apresentações amesquinharam os acervos, como no caso das esculturas italianas. É possível também lamentar certas
mudanças, como a da velha sala dos Rubens, de Maria
de Médicis, onde as molduras do século 19 pareciam ter
se fundido com as telas. Elas foram substituídas por um
design atual, frio e triste.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: Dependência química de Shakespeare Próximo Texto: + fragmento: O coração de Getúlia sucumbe a tanta diversão Índice
|