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São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

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O CORAÇÃO DE GETÚLIA SUCUMBE A TANTA DIVERSÃO

CAFIFA - (Bêbada.) - E agora, o número da cega que rasga o vestido no prego da cerca. (Atravessa o palco de modo teatral.) Ai de mim, fendeu-se minha seda tão macia.
GETÚLIA - (Divertida.) Ei mocinha, cuidado com o prego, não vá desfiar os fundilhos. Olhe para baixo, tem um anão que quer te bolinar.
BURGÓ - Não acha graça, Rosette, a alegria não te excita? (aproxima-se de Cafifa).
ROSA - Você vê na alegria dos outros só aquilo que lhe diz respeito.
CAFIFA - Socorro, socorro, ei, anão tarado, tira as mãos daí, isso não é propriedade particular. (Interrompe-se) Burgó, me dê mais uma carga.
ROSA - Cafifa, não.
GETÚLIA - Também quero, Burgó.
BURGÓ (Ergue um pacote de cocaína)- O alimento que sustenta energias espirituais.
BURGÓ - Diga a ela Getúlia, que você está feliz porque me vê feliz.
ROSA - Precisam trabalhar amanhã, acordar com a pele viva, senão gasto quilos de pomada, eu cuido delas, Getúlia vai ter vinte entradas, e Cafifa de ressaca não presta nem para as portas.
BURGÓ - Veja, Getúlia, Rosa te ama. Não é bom servir de motivo para o sofrimento de alguém? Não será esse o sustento mais doce do seu orgulho ? E o que é a felicidade ? Não é o orgulho satisfeito?
GETÚLIA - Vou espatifar a alma na parede. (Beija Rosa).
ROSA - É hora de descansar, porque a vida recomeça todos os dias, e temos poucos anos de alegria.
BURGÓ tira um maço de dinheiro e põe perto delas - Precisa de mais um argumentos, Rosa ?
ROSA - Não me perturbe, meu querido, no meu divertimento.
BURGÓ - Vamos, deixe o carrocel rodar. (Getúlia se afasta à procura de mais droga.)
ROSA - (À Getúlia.) Faz o que tem vontade, meu amor. Mesmo que não possa mais, a juventude tudo regenera, segue teu coração, querida, ele tem nervos de ferro como de um homenzinho.
BURGÓ - Ouviu sua Rosette ? Você pode querer por conta própria, qual é o seu limite? Você não quer? Qual o seu desejo?
ROSA - Vai, Getúlia. Você pode.
(Rosa tenta levar Burgó para longe.)
GETÚLIA - Eu quero. (sai).
BURGÓ - É assim que tem que ser. Tudo o que a rodeia deve se submeter a sua vontade.
Cafifa observa pela janela - Pela janela aberta eu vi Getúlia caída na calçada. Moça adestrada pelas máquinas, seu coração não agüentou tamanha diversão. Na manhã escura de julho, no ano da grande greve, São Paulo era uma cidade morta.

O trecho acima faz parte da peça "O Mercado do Gozo", da Companhia do Latão, que tem direção de Márcio Marciano e Sérgio de Carvalho e estréia em SP na sexta-feira, dia 15, no Teatro Cacilda Becker (rua Tito, 295, Lapa, tel. 0/xx/11/3864-4513).


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