São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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ENTREVISTA

Para o pesquisador Charles Kupchan, a Europa unificada e rica será o grande desafio ao predomínio americano

Nova tese projeta fim da hegemonia dos EUA

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Um mundo dominado por uma só superpotência é insustentável a longo prazo, e dramáticas mudanças no cenário internacional e na composição do eleitorado americano provocarão o fim da hegemonia dos EUA.
A análise é de Charles A. Kupchan, professor na Universidade de Georgetown (Washington), pesquisador no Council on Foreign Relations e autor de, entre outros, "The End of the American Era: U.S. Foreign Policy and the Geopolitics of the Twenty-First Century" (o fim da era americana: a política externa dos EUA e a geopolítica do século 21).
Seu livro vem provocando acaloradas discussões nas esferas acadêmica e política americanas desde seu lançamento, em outubro passado. Afinal, para o autor, dois fenômenos estão levando o planeta ao multilateralismo.
Primeiro, o fortalecimento da Europa graças à consolidação da União Européia (UE), que ganha força política e econômica e deverá equiparar-se aos EUA logo. Segundo, o declínio do apoio público americano ao internacionalismo, tornando cada vez mais difícil para os EUA manter seus compromissos e carregar o peso de zelar pela atual ordem mundial.
Leia a seguir trechos da entrevista de Kupchan, por telefone, à Folha.

Folha - Em seu livro mais recente, "The End of the American Era: U.S. Foreign Policy and the Geopolitics of the Twenty-First Century", o sr. prevê que a Europa será o próximo rival dos EUA. Como isso ocorrerá?
Charles A. Kupchan -
Atualmente, a visão mais comum é que o provável novo rival do poder americano é o islã ou a China, mas pouca gente, especialmente nos EUA, presta atenção à Europa. Para mim, apesar das aparências, há uma mudança revolucionária ocorrendo na Europa, que, gradualmente, está dando à UE um maior peso coletivo, mais autoconfiança e coerência.
Assim, se houver um contrapeso ao poder americano na cena global, ele será uma UE com uma riqueza coletiva comparável à dos EUA ou ainda mais elevada e com um peso diplomático crescente, pois seus Estados-nações estão dando mais poder a Bruxelas. Ademais, a distância política entre a UE e os EUA parece estar aumentando por conta desse fortalecimento europeu e do comportamento unilateralista e belicoso americano.

Folha - O sr. crê, portanto, que a política externa atual dos EUA possa prejudicar os interesses do país a longo prazo?
Kupchan -
Sim. Atualmente, os EUA estão procurando obter ganhos a curto prazo em detrimento de seus interesses a longo prazo.
Os EUA podem considerar-se em melhor saúde econômica porque se recusaram a assinar o Protocolo de Kyoto [que criou metas para o combate do efeito estufa", e os soldados americanos podem sentir-se mais imunes à Justiça internacional porque Washington não apoiou a criação do Tribunal Penal Internacional. Porém, a longo prazo, se os EUA não mais estiverem no topo do mundo, precisaremos de instituições fortes para que possa haver uma administração coletiva dos problemas internacionais.
O problema é que, infelizmente, os EUA parecem buscar minar essas instituições, afastando-se delas. Para não correr esse risco, Washington deveria alterar o rumo de sua política externa, privilegiando o multilateralismo e resistindo a sua veleidade unilateralista, pois temo que os EUA estejam pondo em risco sua mais profunda forma de poder: sua legitimidade internacional.
Afinal, ainda há no mundo o sentimento de que os EUA são uma superpotência benigna. Contudo, em minhas viagens ao redor do mundo, venho percebendo que, nos últimos tempos, Washington provoca surpresas negativas não apenas nos países muçulmanos mas também em alguns de seus maiores aliados. Trata-se de uma constatação bastante preocupante para os americanos.

Folha - O sr. defende a tese de que dois fenômenos estão levando o mundo de volta a um certo multilateralismo. O primeiro é o fortalecimento da UE. Qual é o segundo?
Kupchan -
O outro fenômeno é a erosão do que chamo de internacionalismo liberal. Ou seja, uma forma de internacionalismo mais de centro, moderada e multilateralista. Atualmente, vejo os EUA deixando o centro e gravitando lentamente para os dois extremos: o unilateralismo e o neo-isolacionismo.
Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, não se vê mais isolacionismo no centro da política americana, pois as vozes que preconizam o isolamento dos EUA foram caladas pelo terrorismo. Todavia não creio que essas vozes tenham sido caladas para sempre.
Assim, é importante ter em mente quem era George W. Bush antes dos ataques aos EUA. Ele é o homem que, mesmo antes de ser eleito, já dizia que a América não poderia ser tudo para todos os países, que os soldados americanos deveriam deixar os Bálcãs e que Washington teria de parar de tentar negociar a paz em inúmeros conflitos regionais. Bush chegou até a afirmar que os EUA deveriam focalizar sua atenção e sua energia no Ocidente.
Creio que, com o tempo, essas inclinações venham a ganhar força novamente, visto que se trata do modo de pensar dos conservadores da América profunda, que, na verdade, são os principais eleitores de George W. Bush e de seu Partido Republicano.

Folha - Vivíamos num mundo melhor durante os anos do democrata Bill Clinton (1993-2001)?
Kupchan -
Creio que sim. Porém o que há hoje nos EUA não é um fenômeno fugaz que só existirá durante o governo de Bush. Afinal, o modo de pensar do atual presidente apenas reflete mudanças mais profundas que ocorrem na sociedade, na política e na demografia americanas.
Vários aspectos têm de ser analisados. As regiões do país que mais crescem atualmente são as partes do sul e do oeste que são predominantemente agrícolas. Trata-se de duas parcelas do país que, tradicionalmente, são muito pouco favoráveis ao internacionalismo liberal e ao multilateralismo. Essas regiões são mais apegadas à América Central e à América do Sul normalmente.
Essa mudança em direção a uma política externa mais comedida e isolacionista ocorrerá em parte por conta do crescimento proporcional da população hispano-americana. Na segunda metade deste século, cerca de um terço da população americana será de origem hispânica.
Essas pessoas tendem a viver em Estados muito importantes no que se refere ao sistema eleitoral americano, como o Texas, a Califórnia e a Flórida, o que também contribuirá para mudar o cenário político.
Além disso, os americanos de origem hispânica deverão defender uma política externa mais voltada para o Ocidente, sobretudo para a América Latina, e menos preocupada com a manutenção da paz em todo o planeta.
Com tudo isso, quero dizer que o que havia antes dos atentados terroristas de setembro de 2001 não era apenas uma idiossincrasia passageira de Bush, mas uma mudança mais profunda, que reflete as alterações na composição do eleitorado americano.

Folha - Como a cultura política dos EUA influencia sua política externa atualmente?
Kupchan -
Indubitavelmente, a cultura política é um fator muito importante na concepção de estratégias. Se observarmos os primórdios da história americana, veremos que o país tinha uma cultura política que era tanto unilateralista quanto isolacionista.
Para os fundadores da nação, a América não deveria envolver-se em disputas pelo poder. Contudo, ao mesmo tempo, eles pensavam que, se isso fosse inevitável, o país deveria fazê-lo conforme seu modo de ver as coisas, não segundo uma lógica internacional. Isso reflete a hostilidade dos americanos da época às suas próprias instituições e, principalmente, às instituições internacionais.
Na realidade, até a Segunda Guerra Mundial, a América não tinha abandonado verdadeiramente seu isolacionismo. Foi após a guerra que os EUA apoiaram realmente a criação da ONU, da Otan [aliança militar ocidental", do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.
Atualmente, há um retorno a alguns desses impulsos profundos dos americanos, a algumas tradições que foram esquecidas durante a Guerra Fria.
Mas, sem a ameaça que a URSS representava à época e com a mudança demográfica que mencionei acima, creio que a política externa dos EUA venha a parecer-se mais com a que existia antes do ataque japonês a Pearl Harbor [1941" que com a dos últimos 50 anos.
Muita gente pensa que a ameaça terrorista obrigará Washington a manter uma política externa agressiva, porém não acredito que isso seja verdade. Afinal, a ameaça terrorista é difusa e fará com que os EUA ataquem os "bárbaros" sem se esquecer de levantar barreiras de proteção. O isolacionismo faz parte dessa segunda tendência.

Folha - Como será o mundo sem a hegemonia americana?
Kupchan -
Será um mundo de ninguém. O fim da era americana não abrirá caminho para uma outra era, já que a cena internacional não será dominada por nenhum Estado. Haverá um maior equilíbrio no que se refere ao poder.
A UE será importante, a China também. A longo prazo, mesmo grandes países em desenvolvimento, como a Índia e o Brasil, terão sua esfera de poder mais bem definida. Assim, o poder americano não desaparecerá, não será eclipsado pela UE, mas o mundo será mais multilateralista.
O mundo será mais difícil de ser administrado, pois um mundo com um só capitão é mais fácil de ser gerido do que um com inúmeros capitães. Creio que o maior desafio para os EUA hoje é administrar a transição do mundo atual para uma cena internacional com múltiplos centros de poder.
Todavia acredito que os EUA estejam fazendo tudo errado a esse respeito. A doutrina de segurança de Bush, por exemplo, argumenta que o objetivo dos EUA é manter seu domínio mundial, resistindo ao aparecimento de qualquer contrapeso que possa ameaçar sua hegemonia. Paradoxalmente, isso provocará o surgimento de vários pontos de resistência à política americana.



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